Bispo e Duchamp


(conversa em café)

V.R. se declara por Duchamp. Prefiro Bispo, digo. Não há como compará-los, retruca V.R.

É possível compará-los? Líamos ambos a biografia de Duchamp. Então, certo dia, Cláudio Trindade nos enviou por e-mail um vídeo de Arthur Bispo do Rosário (realizado por Fernando Gabeira, encontra-se no endereço
http://www.youtube.com/watch?v=x9wc-_XoCcw).

Após lermos a biografia de Duchamp, vermos o vídeo de Bispo, o acaso fez encontrar eu, Victor e Cláudio no Centro de uma vespertina quarta-feira de muitos cafés. A conversa, é claro, acabou fundeada em Bispo e Duchamp.

Realmente não será possível compará-los/relacioná-los se estivermos na lógica da história da arte, da crítica ou mesmo das curadorias que são ações intelectuais que buscam coerências a partir de determinados eixos: histórico, estilístico, poético, regional, etc. Aparentemente, não há nada que ligue Duchamp à Bispo.

No entanto, nem que seja pelo acaso – que reuniu Victor, Cláudio e eu próprio para conversarmos sobre isso – sim, é possível pensarmos Duchamp e Bispo.

Duchamp era, sobretudo, irônico. Lançou mão do bom humor, do sarcasmo para desconstruir as artes plásticas (não consigo pensar em Duchamp, no entanto, sem considerá-lo um grande erudito, como alguém que conhecia, como poucos, a história da arte e as regras do jogo que operavam no circuito artístico. Ele nunca declarou isso, nem poderia fazê-lo, no entanto, tenho absoluta certeza de que o longo período em que trabalhou em bibliotecas foi ocupado com inúmeras leituras sobre arte). Erudição, ironia e uma pitada de iconoclastia: combinação explosiva.

Bispo, o sério, como lembrou Cláudio. Ao ser convidado para uma festa de São João, esbravejou que se tratava de coisa de pagão. Era preciso ver uma cruz que dizia ter nas costas, ao contrário, sequer se dirigiria à pessoa. Acreditava tanto em um céu cristão, com anjos e o Senhor o aguardando, que reordenou o mundo a seu modo em mantos, estandartes – objetos sagrados e militares. Desconhecia a história e o circuito artístico. Não se refletia neles. Seu espelho era outro: o céu.

A memória, para Duchamp, é coisa pouca, fonte de infindáveis jogos de humor (o bigode da Mona Lisa). Para Bispo, é sagrada, deve ser trabalhada para ser apresentada ao Senhor da melhor maneira possível (o estandarte com a memória total do mundo).

Duchamp iconoclasta. Conhecia tanto as regras do jogo, que pôde subvertê-lo. Bispo conservador. Acreditava tanto em um paraíso cristão, que se trancou em um quarto por sete anos para trabalhar e, assim, atingi-lo.

Sem Duchamp talvez não conhecêssemos a obra de Bispo, bem assinalou V.R. Foi aquele quem escancarou as portas por onde entraram a obra de Bispo. É preciso deixar claro, no entanto, que Duchamp escancarou as portas do campo das artes plásticas. Isso refletiu nas artes e não na vida (por mais que a arte contemporânea queira o contrário). Continua um movimento interno, para poucos (mais ainda).

Bispo era tão conservador, em sua louca fé cristã, que acabou por subverter – mesmo dentro de uma normatividade estrita – o campo artístico. Bispo não se vê no espelho do circuito artístico. Não precisa disso, mesmo porque não quer subvertê-lo. Seu verbo é transcender (palavra expulsa do vocabulário artístico desde os românticos). Pela ação estética Bispo quer atingir o céu. Acabou atingindo o circuito das artes visuais.

A verdade: interessa-me, em arte, um certo estado febril, estreitamente ligado à memória que retoma a experiência de vida para algo – nem que seja a morte ou a insanidade. É diante da morte que o assombro vislumbra. Bispo tinha a morte ao seu lado. Duchamp não tinha nada disso. Era um jogador de xadrez, pronto para uma próxima partida, que sabia exatamente qual o próximo movimento até arrecadar o xeque-mate. A ironia de Duchamp é de soberba (é preciso lembrar de Baudelaire, que dizia que o riso é um movimento de superioridade, de arrogância em relação àquilo de que se ri). Sentia-se tão superior àquilo que acontecia no circuito artístico que pôde se divertir as custas disso. Soube viver. Bispo soube morrer.


(F.C.B)

Bispo escravo


Em vídeo maravilhoso que está no YouTube (http://www.youtube.com/watch?v=x9wc-_XoCcw), Arthur Bispo do Rosário diz a Fernando Gabeira:

“Eu não tenho noção de nada, eu não tenho tino. Tudo é de acordo com o que Ele mande que eu faça. Faça isso, faça aquilo, eu sou obrigado a fazer. É porque eu sou escravo”.

A loucura de Bispo, sua extemporaneidade é um assombro para a história da arte e mesmo para a política contemporânea. Enquanto novas proposições agitavam o panorama das artes e movimentos reivindicavam a liberdade política, sexual, social, religiosa, etc., Bispo dizia ser
escravo. E pior, escravo de um Deus cristão.

(F.C.B)


multiplicidade de contradições

Multiplicidade de contradições

(texto publicado no Caderno Idéias, do Jornal ANotícia, em Santa Catarina)

Victor da Rosa
Especial/Florianópolis

Junto a Fernando Boppré, no blog sobre artes visuais que vamos mantendo juntos [ www.arteporextenso.blogspot.com ], realizei pequeno comentário crítico às proposições de "NBP", do artista Ricardo Basbaum, que esteve, faz alguns meses, em Florianópolis. Recebemos, então, generosa resposta, primeiro do próprio Ricardo, e depois de seu irmão, Sérgio Basbaum. Certamente, estas respostas vêm de encontro com grande parte das questões que proponho discutir e, por isso, surge interesse por nova resposta, ou na realização de novas perguntas, agora um pouco mais pontuais. E resolvo publicar esta nova resposta em espaço mais público porque acredito que a conversa crítica, neste nosso Estado, precisa sair da fronteira do privado. Pois se tal conversa não servir para a mudança de algumas posturas, pode servir ao menos para torná-las mais claras.

Uma questão inicial, portanto, e que pode servir como ponto de partida: a proposição do artista Ricardo Basbaum, com "NBP", que busca alguma força pela interatividade e pelas relações que tal interatividade poderia gerar, consegue ser, no máximo, como as ações realizadas evidenciam, entretenimento para especialistas – sugere uma experiência para passar o tempo, e não tensioná-lo, reinventá-lo. A partir da pergunta feita pelo artista: "Você gostaria de participar de uma experiência artística?", alguns especialistas, pois se trata sempre de uma relação com especialistas, sugerem alguma intervenção no objeto – e geralmente uma intervenção banal, é preciso dizer. Dificilmente aparece alguma tensão maior com o circuito, com a história, ou com a proposição mesmo. O objeto de Basbaum não busca oferecer uma experiência com o "comum" – entendendo o "comum" no sentido de Giorgio Agamben, como o qualquer coisa, a abertura, categoria que pode provocar implosões em certos campos políticos, confundir fronteiras – mas somente uma experiência especializada, (de)limitada, portanto, dentro de regras marcadas e de um campo simbólico também absolutamente marcado, a saber, o da instituição universitária e do circuito artístico.

A proposição de Basbaum, mais, não oferece conseqüência estética alguma fora de certo circuito de normas, não faz movimentar a história para fora dela, e sua insistência só traz soluções cansadas e desgastadas a arte contemporânea: "a interatividade pobre", para usar um termo do próprio Basbaum, quando fala de "web arte". E é nesse ponto que "NBP" se afasta, ou fica muito aquém, enquanto proposta de tensão, de experiências como a de Hélio Oiticica, artista que Basbaum gosta de citar. E, para abrir outra conversa, cabe, aqui, perguntar – o que restaria do "NBP"? Ou qual seria, então, e de fato, sua força? Ora, o que sobraria de "NBP" enquanto força seria a maneira como seu funcionamento dentro deste circuito é operado, mas a maneira como acontece esta negociação só torna a experiência ainda mais contraditória. Para pensar estas contradições, portanto, sugiro alguma reflexão em torno de uma intervenção particular.

Faz quase dois anos, o grupo "Vaca Amarela", na época formado por alguns alunos da Universidade do Estado de Santa Catarina, alunos que hoje são artistas com produção constante, recebeu o objeto de Basbaum com a pergunta: "Você gostaria de participar de uma experiência artística?" A intervenção do grupo, nessa ocasião, foi a simples doação do objeto para o Museu de Arte de Santa Catarina e o envio do recibo para o endereço de Basbaum. Essa foi a discreta ação do grupo: tirar o objeto de funcionamento. O "Vaca Amarela", dessa maneira, entendendo os problemas que a proposição levanta, anulou o seu circuito, pois o que se pretende com o "NBP", ou seja, que ele transite pelos círculos particulares, multiplicando sua lista de autores – e cada assinatura é um valor [!] a mais dado ao objeto – não se realiza nem pode se realizar dentro de um Museu. Enviar o "NBP" para o Museu, portanto, e principalmente para o MASC, é um gesto irônico, já que cria um paradoxo: o grupo realiza a doação do objeto, mas de uma maneira sutilmente dissimulada, o que cria um curto-circuito no próprio ato de envio. Ora, o que acontece com o objeto no acervo do Museu? – Não acontece nada, e não pode acontecer nada, pois NBP torna-se nulo enquanto proposta de circulação. O gesto do "Vaca", dessa maneira, não tem generosidade nenhuma, como escreve Basbaum – é um gesto corrosivo, até perverso. E, aqui, chego ao ponto onde interessa perguntar: quais foram as conseqüências desse gesto do grupo "Vaca Amarela"? Ricardo Basbaum, na ocasião, veio até Santa Catarina para salvar seu caro objeto do Museu – abrindo, assim, uma multiplicidade de contradições.

Basbaum, no e-mail que nos envia, diz que não vê seu objeto como proposta de "competição" ou busca por "créditos artísticos" – embora, é preciso insistir nisso, também não faz questão de suspender o convite para participar da Documenta, em Kassel, justamente com esse "objeto coletivo" – Basbaum diz que "NBP" é uma proposição artística, "um jogo". Ora, se a proposição sugerida a partir de "NBP" é um jogo, a questão é que Basbaum descumpriu as regras do próprio jogo que criou. Pois se o gesto do "Vaca", gesto duchampiano, uma vez que desvia e corrompe as regras do circuito usando de suas próprias regras políticas – e é justamente por isso que considero importante ter enviado o objeto para um Museu – se o gesto do "Vaca" foi um gesto final, o gesto que apaga e destrói qualquer vida simbólica daquele objeto, a pessoa de Basbaum, ao vir até Santa Catarina para salvar seu "NBP", descumpriu as próprias regras de seu jogo. Basbaum perdeu o jogo, e no meio disso reinventou as regras para continuar jogando. E isto é uma grande contradição.

Basbaum, o propositor das regras, dita o jogo da seguinte maneira: "os participantes trabalham pela positividade de seus próprios discursos, sem passar por minha mediação". É importante anotar isto, Basbaum diz que a regra do jogo consiste em não passar por sua mediação. Basbaum diz, em seguida: "existem os elementos do jogo proposto". Pois penso da seguinte maneira: Basbaum perdeu o jogo – pois devemos pensar este jogo como campo de forças, sim: como campo de tensões políticas, pois é só disso que se trata – e depois que viu seu jogo perdido, o objeto doado, a proposição falida, Basbaum usou a autoridade que possui sobre a obra e sobre o circuito que constrói para recuperá-la. Mais ainda: multiplicou o objeto depois disso, transformou um objeto, pois era único, em vários, usando da lógica da reprodutibilidade como controle do risco. E devemos pensar tal gesto, sim, como um controle sobre o risco, como um sistema de autorização e desautorização do risco – e é importante perceber que, aqui, já não temos mais a interatividade, e sim um simulacro dela. Curioso pensar, ainda, a partir do e-mail que Basbaum nos envia, toda uma microfísica do poder construída em torno do sistema que cria – inclusive, com um esquema de "senhas", "relatórios", etc.

A questão é que, principalmente a partir desta situação, fica claro que "NBP" veicula tão e somente a voz de Ricardo Basbaum, sua trajetória enquanto artista e sua autoria. Ricardo Basbaum é aquele que tem autoridade para recuperar o objeto, e aquele que tem autoridade para multiplicá-lo, é aquele que tem o poder sobre a proposição. Portanto, considero difícil sustentar um "não-lugar" da obra, pois o lugar de "NBP" fica muito claro. A proposição feita a partir "NBP", dessa maneira, é e só pode ser uma proposta falsa de coletividade – e toda a força que poderia restar, como pergunto no início deste texto, se dilui nesta constatação. Basbaum continua, sim, sendo o autor do objeto, e sabe de sua autoria. Mais que isso, reivindica tal autoria. Basbaum não sugere questionamento nenhum. E reivindica esta autoria justamente participando da Documenta, de Kassel, e poderia ser de qualquer outro evento, como o do Palácio Cruz e Sousa, com tal objeto assinando. A questão, aqui, não é discutir se tal questão é ética ou não, se Basbaum quer ou não criar um mercado em torno de si, embora fosse também preciso realizar tal pergunta, a partir de um outro eixo de discussão – o que quero é apontar que, se Basbaum pretende suspender a moderna tradição da autoria, e este é o lugar onde se constrói todo seu discurso de defesa e justificação de sua proposta, se é este o lugar onde a proposta quer se sustentar, e se seu projeto consiste em "explicitar o modo operativo da obra de arte", Basbaum só o faz para reafirmá-lo em seguida. Cai na reafirmação do mesmo, naquilo que a proposição parece suspender. Outra contradição.

O autor de "NBP", ainda quis provocar um debate com o "Vaca", depois que teve o objeto recuperado, mas o grupo não compareceu a nenhum dos convites – o que leio como outro gesto de subversão, um segundo golpe, pois a ausência de debate, aqui, não deve ser lida de maneira vulgar, como fuga, e sim como gesto de neutralização, como potência neutra – dispositivo político que pode ser entendido a partir de Roland Barthes: nem sim, nem não, ou mesmo como uma possível fórmula de Bartleby: "preferiria não". Basbaum gostaria de "entender", como diz no debate realizado no MASC, o que o gesto do "Vaca" significou. Certamente, tal ausência de debate é só mais um modo de alargar as contradições de um objeto que não consegue se sustentar fora de qualquer discurso. O gesto do "Vaca Amarela", dessa maneira, e por fim, deve ser tudo que o grupo tem a dizer, pois toca diretamente na multiplicidade de contradições que tal proposição suscita. E continua.

[V.R]

carta publicada no dc

Cultura

Toda discussão política hoje se transforma em cinismo. Não é diferente na entrevista que Edson Machado, diretor da Fundação Catarinense de Cultura, concedeu ao caderno de Variedades do DC na semana passada. Atuando há pelo menos três anos nas discussões culturais do Estado, confesso que não consigo ver a classe artística se mostrando "favorável aos resultados alcançados" pela FCC. Muito pelo contrário, o descontentamento é geral. Os anos de 2005 e 2006 representaram um grande transtorno para os artistas que procuram trabalhar em SC devido à falta de pagamentos de editais, de transparência nos critérios de seleção de projetos e de uma política clara e consistente para o setor.

Victor da Rosa
Escritor - Florianópolis