Asp-barroco, barroco-Asp (anotações corridas sobre o trabalho do meu amigo Carlos Asp)
Idéia de um intercâmbio estendido com o real. Isso estava no gótico, no romântico, no impressionismo. O barroco procede por acúmulo. Carlos Asp, nos seus intermináveis campos relacionais, também acumula. Procede com o adensamento e a saturação da cor sobre as superfícies. Mas é o acúmulo do mesmo num diálogo com o vazio. Um contraponto ao barroco que não aceitava o vazio, preenchendo ao máximo todas as áreas passíveis de receberem tintura ou retorcendo as formas escultóricas, naquilo que Germain Bazin chamou de “cortina de formas e imagens”. Não era possível ao espectador se evadir do tema abordado porque ao lado dele, acima, abaixo, enfim, no universo do enquadrado, do visível, havia mais formas, mais cores, mais fantasmas. Em Asp, contudo, uma administração do vazio. Uma boa medida entre um campo e outro. A justa medida. A relação Asp-barroco, barroco-Asp, é pertinente sobretudo em termos de uma nostalgia do sagrado. Ele almeja o sagrado em sua vida. Contudo, não há o sobre-humano em suas obras. O que há é o homem minúsculo. O próprio Asp. As cidades brasileiras são verdadeiras Idades Médias a céu aberto: ainda hoje a vida cotidiana circula no entorno das igrejas que são grandes pontos de exclamação na paisagem. E isso faz lembrar outra coisa: no Brasil, até a segunda metade do século XVIII, a arte foi quase exclusivamente religiosa. Em contraposição, hoje assumiu-se laica, fomentada no interior de centros universitários. Asp passou por essa formação acadêmica. Chegou a lecionar, inclusive, no Centro de Artes da UDESC. No entanto, o que chama a atenção nele é um outro dado: a retomada do discurso religioso. Isso não está explícito, nem implícito em sua obra artística. Porém basta se aproximar dele para logo se ouvir alguns versos da Bíblia. Eis o paradoxo: um artista que frequenta o circuito da arte contemporânea (onde é de bom tom ser cético e mais ainda ser ateu), mas que crê na Palavra. A maioria das pessoas que o conhece sabe da história de sua conversão, do momento em que ele deixou, até mesmo, de ser artista. Mas, ao vê-lo novamente no circuito, acabam considerando isto um episódio superado e anedótico. No entanto, sempre quando é questionado sobre esse momento, ele diz, com toda a tranquilidade, que continua temente a Deus. As pessoas acabam omitindo, deste modo, o lado “exótico” de Asp. Pois bem, é preciso encontrar a dimensão do religioso, do re-ligar, na obra do Asp. Afinal, estes campos que surgem em seus desenhos, que nunca se encontram, que mantém uma distância entre si, mas que paradoxalmente ele os chama de “campos relacionais”, ensaiam uma espécie de ligação. Estes campos, em verdade, são círculos que, no início, não eram exatamente círculos. Eram manchas que se espalhavam pelo papel. Mas que foram sendo ordenadas por esse desordenado que é o Asp. Um senso de organização do plano acabou por constituir formas circulares. Em complemente, o caráter obsessivo (e escultórico) o fez atribuir como conteúdos destes círculos cores sólidas riscadas com uma força e precisão impressionantes. São campos que pensam, que se tornam esculturas no papel, por sua espessura. Asp diz que são desenhos que querem ser pinturas. Em verdade, ultrapassou a pintura e chegou à escultura, com o peso do colorir. E pela densidade daquilo que usa como planos. São espécie de “Bichos” de Lygia Clark em forma industrializada século-vinte-e-um. Essas caixas todas de panettone, de chocolate Garoto, de remédios, enfim, essa infinidade de embalagens desdobráveis que compõem o cenário contemporâneo, que enchem nossos olhos e prometem satisfazer nossos desejos. São essas caixas que são desmontadas por Asp e utilizadas como suporte de traço e cor. É como se abrisse esses corpos repletos de desejo para utilizar justo o lado oculto. Despojos invertidos do desejo: consumimos o conteúdo e deixamos a embalagem, a forma que encapsulava o que devoramos. Asp é como alguém que tira a camiseta pelo lado do avesso. E não faz questão de fazê-la voltar ao lado correto. Ele faz isso e descobre a superfície não cuidada, a superfície vazia, geralmente de papelão, que já carregava consigo marcas de cola, de códigos impressos. Ele revela o interior das caixas, o interior das coisas, o interior das pessoas. Espelhamento dos indivíduos, uma metáfora do indivíduo aberto novamente a possibilidade do religare. É neste espaço profano que Asp vai desenhar seus campos relacionais. E o faz com uma calma e uma simplicidade que essas caixas nunca mereceram em sua dita vida útil. Mesmo se uma delas fosse reciclada, por exemplo, não chegaria a receber o cuidado que Carlos Asp dispensa, afinal, até mesmo a reciclagem adotou o ritmo industrial. Sobre essas superfícies, Asp não usa lápis de cor ou giz de cera. Ele empenha grafites de qualidade, dermatográficos, aquarelados, lápis importados, com uma solidez de cor, uma beleza cromática singular. Em sua obra, portanto, há a consagração daquilo que até então era banal. Ao contrário de outros artistas que lançaram mão daquilo que chamei de despojos (disso que muitos chamam de lixo, resquícios da civilização moderna industrial que a Pop Art tanto utilizou), Asp utiliza estes materiais para aplicar sobre eles procedimentos nobres do desenho e da pintura. Após finalizar um, dois, enfim, diversos desenhos, começa um trabalho quase infantil (que já estava lá no ato de colorir a exaustão) que é o de colar um suporte ao outro. Torna-se um escultor uma vez que esses desenhos viram objetos desdobráveis. O re-ligare talvez esteja aí, nessa operação literal de juntar um ao outro, com uma inocência quase infantil, uma humildade desse ser minúsculo chamado Carlos Asp. Que parte do nada. Do pouco.
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