Não é possível abolir por completo aquilo que uma vez uniu duas pessoas: por mais que se esforce, restarão reminiscências. A idéia de "laços" a juntar dois destinos talvez não seja suficiente, já que, de modo geral, um laço pode facilmente ser desfeito ou, em última instância, cortado. Talvez, mais apropriado fosse, pensar em um cabo submarino: mesmo que um dia não se torne mais necessário, ele continuará lá embaixo, nas profundezas, insistindo em ligar as partes, ainda que não tenha mais função prática alguma. Ao decidir conviver sob um mesmo teto, um casal adota o presente e o futuro como tempos verbais da existência. Quando renunciam a isso e optam pela separação, ambos mergulham no pretérito de tal modo que é preciso resignificar tudo e todos ao redor. Separar-se de um grande amor talvez seja uma das experiências mais drásticas da contemporaneidade, que, contudo, cada vez mais é banalizada, afinal, é preciso logo se recuperar e voltar ao mercado - do consumo, do trabalho, do sexo. Com isso, o casamento e a separação tornaram-se apenas mais uma das tantas experiências a que o sujeito tem que se submeter nos tempos de hoje. Não há mais rito algum, nenhuma passagem possível.
O Passado, último filme de Héctor Babenco, aproxima-se de uma outra possibilidade de experiência sensível do amor. De modo profundo, expõe como o pretérito assola e atua sobre o presente. Discute a impossibilidade de se esquecer por completo. Mesmo porque o passado assinala - seja com marcas, seja com ausências - a existência. Desde o início do filme, os personagens centrais - Rimini (Gael García Bernal) e Sofia (Anália Couceyro) - se deparam com o passado: ambos estão em uma festa, já decididos a se separar, e são surpreendidos por um vídeo com momentos felizes do seu casamento. Desconcertados, anunciam o fim da relação a uma grande amiga. Esta, no entanto, considerava que Sofia iria lhe contar que estava grávida. Não, Sofia não esperava criança alguma: mas naquele mesmo momento, tanto ela quanto Rimini tornaram-se grávidos (carregados, pesados) do passado. Uma criança direcionaria o tempo para o futuro; a separação, contudo, os engravidou do pretérito.
Sofia é uma espécie de trauma para Rimini. Uma forma quase patológica do passado e de amor. Que sempre retorna, independente de sua própria vontade. As narrativas sobre ela nunca deixam de lhe chegar aos ouvidos: seja pelo pai, seja pelo ex-namorado da própria Sofia. Ela está em tudo: no ar que respira. A sutileza do filme não permite emitir julgamentos morais rasteiros. Sofia não é, simplesmente, alguém de quem Rimini não consegue se livrar, um estorvo ou um tormento em sua vida. Não há bem nem mal, pelo contrário, há uma força imperativa que move Sofia sempre em direção a Rimini. A todo instante, seja pelo acaso, seja por insistência, assiste-se ao seu retorno à vida de Rimini. Por vezes, com ternura (como no encontro em um hospital), em outras violentamente (como no caso do seqüestro do filho de Rimini com sua nova esposa, Carmen). Em ambos os casos, contudo, era preciso lidar com o passado, algo que Rimini simplesmente não fez. Por inabilidade ou impaciência, ele se entregou à vida prática sem tempo algum para processar as rupturas.
Rimini começa a perder a memória. O francês e o inglês, idiomas com os quais trabalhava como tradutor, pouco a pouco são esquecidos. Uma delicada metáfora: um tradutor que se esquece dos idiomas. A partir de então, cada vez mais ele perde a capacidade não apenas de traduzir as línguas, mas também de interpretar a realidade. Em pouco tempo, desprende-se da vida real e se isola em um apartamento. As pessoas não se separam, elas se abandonam, diz Sofia. Após isso, é preciso que cada um saiba cuidar de si ou, então, decidir conviver com os seus mortos. Sofia é abandonada por Rimini, que é abandonado por Carmen. Por fim, Rimini abandona a si próprio. Decide morrer em vida. Em uma reviravolta, ele acaba sendo salvo pelo esporte. A mente que a tudo esquecia é deixada em segundo plano em nome de um corpo que pode reproduzir, sem problemas, os exercícios do condicionamento físico. A única saída para Rimini estava em si próprio, em seu corpo adormecido.
Há, ainda, um problema que não se resolve e que perpassa todo o filme. Após a separação, mesmo a contragosto, resta a Sofia cuidar do maior patrimônio do casal: as fotografias. Ela insiste para que Rimini a ajude a separá-las. No entanto, ele se esquiva da tarefa, com uma impressionante definição do pretérito: "O passado é um bloco que não se pode dividir". E, assim, coube a Sofia carregar este "bloco" ao longo dos anos que se seguiriam. Em contrapartida, Rimini entregou um bloco inteiro nas mãos de Sofia. Desligou-se de seu passado rápido demais, delegando a ela suas lembranças. A seu modo, ela soube processar seus fantasmas: elaborou um tratamento entre a psicologia e a auto-ajuda para mulheres que foram abandonadas pelos maridos. O problema de Sofia é amar demais e, de alguma forma, ela consegue compartilhar isso com outras pessoas, criando um coletivo que se auto-sustenta, ainda que precariamente. Ao contrário, Rimini nega-se a pensar sobre o passado e, cada vez mais, isola-se de tudo.
"Essa é a mulher da minha vida", costuma-se afirmar após um longo tempo de relacionamento. No entanto, não é possível afirmar que existe "a mulher" ou "o homem" para toda uma vida, como ordinariamente se diz. No entanto, a existência pode colocar em nosso caminho uma pessoa cuja intensidade e presença acaba por transformá-la na mais importante de nossa vida. Sofia não é a mulher da vida de Rimini. Contudo, sua presença é tão marcante que, mesmo sem decidir, ela acaba por se tornar "a mulher" da vida de Rimini. É sobre seu retrato que ele cheira cocaína. É ali, naquele rosto repleto de memórias, que ele encontra a potência para trabalhar, criar e sobreviver. Rimini sofre de reminiscências. Sofia também. Cada qual a seu modo: aquele no silêncio e na perdição da vida contemporânea. Aquela na resignificação extrema do relacionamento, na dramatização dos atos de amor. Sofia e Rimini se amam porque a existência assim o quis. E mesmo separados, continuam a viver uma história de amor. E nem mesmo a falta de memória, o "alzheimer precoce" de Rimini, conseguiu apagar essa marca que, pouco a pouco, transformou-se em ausência.
* Publicado no Caderno Cultura do Diário Catarinense, em 03 de maio de 2008.
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