Bianca Tomaselli: a grade e o objeto

Se, de um lado, a arte pode ser lida a partir de algumas persistências que se acumulam ao longo da história, de outro, certos artistas carregam consigo a própria fórmula do pathos. É como se a história da arte pudesse ser entendida inteiramente a partir destes trabalhos. Em suas práticas, fazem reforçar e aperfeiçoar determinadas estruturas que se repetem, numa verdadeira aventura em torno de si próprios. Bianca Tomaselli parece ser uma das artistas que mais profundamente explora as nuanças do mesmo.

A grade. O traço reto que se cruza com outro reto traço. Surgem inúmeros quadriláteros. É assim, indefinidamente, que a estrutura da grade se repete no trabalho de Bianca Tomaselli. É a partir do pleno domínio do mesmo – a grade – e do espaço em que ele será instalado que surge a experiência do mínimo capaz de arrebatar. Em sua exposição na Fundação Joaquim Nabuco, em Recife, no ano de 2005, ele se deu pela conjunção entre piso e parede. Por toda a extensão das paredes da sala onde se encontrava, a artista desenhou uma rede de quadriláteros apenas com rejunte branco. Com isso, fez coincidir a grade retangular pré-existente – a saber, a do piso da sala – com aquela instalada a partir de seu trabalho. Tomaselli domina o espaço como poucos. E isso no interior de um regime escasso de materiais, de exigências.

O desenho. Ao adotar o rejunte como base material para o tracejar, ela abstrai os demais elementos que, ordinariamente, se apresentam junto ao rejunte: não há piso, azulejo, nem mesmo o chão. O rejunte se torna grafite nas mãos da desenhista Bianca Tomaselli. A relação com o desenho e com a pintura é inevitável: afinal, como um pintor, ela mistura o rejunte com água até chegar a uma tonalidade que lhe agrada. E, como o desenhista, tem que se esforçar por manter o traço. É na linha que se percebe a hesitação da mão da desenhista. É impressionante descobrir que Bianca Tomaselli é dona de um desenho virtuoso (foi monitora, por alguns semestres, da disciplina de desenho, do curso de Artes Visuais do Centro de Artes da UDESC). No entanto, agora, seu traço está reduzido a um mínimo necessário sem que isso, contudo, acarrete a perda da presença daquela que desenha. No tracejar, observa-se sua pulsação, seu corpo, sua força. É ali que ela se encontra: nas tremulações de uma linha reta afeita a poética do mínimo.

O ferro. É como se a artista mostrasse as entranhas da modernidade: afinal, é através da grade, das redes que se ergueu, literalmente, as estruturas da construção civil e que configurou a espacialidade daquilo que entendemos por vida moderna. As casas, os hospitais, as escolas, as prisões, enfim, toda uma infinidade de edificações é sustentada por redes de ferro. É por entre essa malha férrea entranhada no concreto que atravessam os barcos, os aviões e os automóveis. Por isso, Sigfried Giedion, em anotação feita por Walter Benjamin em suas “Passagens”, descreveu a experiência estética fundamental da modernidade como aquela depositada nas pernas de aço da Torre Eiffel: “através da fina rede de ferro estendida no ar, passa o fluxo das coisas”. É essa experiência provinda da arquitetura que Tomaselli faz transbordar em seu trabalho.

O objeto. Em outro momento, na exposição Projeto Pretexto, em Florianópolis, no ano de 2006, Tomaselli instalou um objeto no interior do Museu Histórico de Santa Catarina. A estrutura da grade que até então a artista depositava sobre as paredes dos museus e galerias, agora, torna-se um enorme objeto. Dispendioso, difícil de deslocar, algo que, literalmente, atravanca o espaço do museu. Sabe-se que, certa vez, por conta de um coquitel realizado pelo Instituto Histórico-Geográfico de Santa Catarina, sediado no Museu Histórico, foi preciso remover e colocar o trabalho de Bianca Tomaselli em um canto, para que ele não atrapalhasse a cerimônia e possibilitasse a livre circulação dos convidados pelo salão. Além de se apropriar do espaço, a artista tornou o que até então era o suporte para colocar os trabalhos, ou seja, a parede falsa móvel do Museu Histórico de Santa Catarina, no seu próprio trabalho. Trouxe para o primeiro plano a presença do suporte renegando uma suposta parcialidade deste elemento no espaço expositivo. Com isso, criou um objeto de portabilidade monstruosa, que não poderá ser adquirido ele mesmo por qualquer museu local já que não é possível de ser armazenado em uma reserva técnica sem ocupar um espaço desproporcional e causar problemas operacionais. Mesmo quando está exposto, o objeto provoca ruídos e, afinal, o gesto de se deslocar/esconder o trabalho de Tomaselli, tal qual ocorreu por ocasião do referido coquitel no Museu Histórico, demonstra que ele transita entre a instalação e o objeto, deixando para o público e/ou para a instituição que o abriga a função de descobri-lo ou escondê-lo.

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