- "É loteria", respondeu.
- "Posso tirar uma foto?", pedi a ele.
Ele não respondeu. Ergueu o desenho em que estava trabalhando e esperou que eu o fotografasse. Esse é Raimundo Camillo, interno da Colônia Juliano Moreira, no Rio de Janeiro, há mais de 40 anos. A mesma que abrigou Arthur Bispo do Rosário. Por sinal, o pavilhão onde Raimundo Camillo reside fica ao lado do pavilhão de Bispo. Aproveitei e perguntei se ele o conhecera.
- "O Bispo do 10?", questionou-me sendo que o número era uma referência ao Pavilhão 10, onde Bispo residiu.
- "Sim".
- "Como ele era?"
- "Ele era preto".
Raimundo foi descoberto por Wilson Lázaro, curador do Museu Bispo do Rosário de Arte Contemporânea em uma de suas andanças junto a Ricardo Aquino (diretor do Museu), pela Colônia Juliano Moreira. Num dos pavilhões, encontraram pequenos quadros afixados nas paredes pelos funcionários para decorar o local. Lázaro interessou-se pelo trabalho e encontrou o pequeno Raimundo a trabalhar em pequenos pedaços de papel, colorindo e criando formas minúsculas que criam um todo como uma espécie de bilhete da loteria. Por sinal, ele afirma ter recebido dois carros na loteria. Até hoje continua a jogar, fazendo números infindáveis em pedaços de papel que lhe caem nas mãos na Colônia. Seus trabalhos se parecem com cédulas de dinheiro. E em alguns o suporte é realmente um papel moeda. Ele desenha e colore sobre dinheiro, acrescentando números, alterando o valor monetário e, evidentemente, estético dessa peça consagrada que se chama dinheiro. Raimundo não rasga dinheiro, mas faz arte sobre ele. Percebi que estava com poucas canetas e lhe ofereci de presente uma caneta azul muito gostosa de escrever, com ponta hidrográfica, de cor azul. Relutou um pouco mas logo a apanhou e, para meu espanto, ao invés de testá-la em um pedaço de papel separado ou nas folhas de jornais que tinha em sua mesa, ele o fez diretamente sobre o desenho, voltando a trabalhar na nossa frente. Despreendimento provindo de uma falta absoluta de solenidade em relação a arte. Raimundo despediu-se mostrando novamente seu desenho para eu fotografá-lo. Foi encantador o modo como ele se deixava fotografar: colocava seu trabalho em frente ao rosto, cobrindo-o em parte, como quem o utiliza como máscara, como carranca. Não há separação entre a arte e a vida de Raimundo Camillo. E tudo isso por uma via completamente estranha a arte contemporânea.
Nota: Raimundo Camillo participou da exposição "+3", realizada no Museu Oscar Niemeyer, em Curitiba, no ano de 2005. Wilson Lázaro o posicionou ao lado de Bispo do Rosário e José Rufino, outro interno da Colônia Juliano Moreira. Nenhum deles participou de qualquer terapia ocupacional tal qual a realizada por Nise da Silveira no Engenho de Dentro, modelo que ainda hoje é utilizado em diversas instituições de saúde mental. Eles se auto-clinicavam pela arte. Um desejo próprio que os fazia escorrer para fora, em boa medida, da insanidade. O lamentável em relação a essa exposição é que Raimundo Camillo foi impedido por funcionários da Colônia Juliano Moreira de ir à abertura da exposição: a desculpa era que ele não possuía documentos (situação que aponta a incompetência do sistema de saúde mental que sequer tentou conferir-lhe o primeiro passo para a cidadania que é a carteira de identidade.
4 comentários:
Realmente impressionante a história. Sensacionais os desenhos.
É fantástica a forma como a arte se manifesta. Cabe a nós dar oportunidade ao olhar para enxergar a possibilidade da criação.
Gostei do blog,
abraços.
Oi Boppré,
genial "auto-clínica" a de Bispo e seus pares.
abraço.
olá
interessante blog!
adicionei o seu site como link do nosso blog.
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somos um grupo de teatro para usuarios do Caps.
nathan
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