Une femme est une femme (1961), Jean-Luc Godard

Um dos filmes mais divertidos da história do cinema. E didáticos. Sim, porque em meio ao caos – das filmagens, da montagem e, sobretudo, de um roteiro tecido de modo que as personagens estejam sempre em eterno desencontro – surge uma consciência do que é o cinema. Bem poderia se chamar: Un Film est un Film [Um filme é um filme].


Afinal, nele Godard nos mostra os procedimentos de se fazer cinema: os atores ensaiam em cena (Angela, personagem de Ana Karina repete o mesmo texto, assinalando entre um e o outro, que o anterior não estava bom), questionam-se a todo o momento se se trata de uma tragédia ou de uma comédia, olham diretamente para a câmera (o que faz esmorecer a "quarta parede" cinematográfica/teatral).


Antes de tudo, portanto, um filme de cinema. Mas também de literatura, de pintura. Os diálogos mudos com capas de livros que Karina e Brialy trocam entre si são, sem dúvida, uma das passagens mais profícuas do cinema. Além disso, o companheiro de Angela se chama Émile Récamier (a personagem de Jean-Claude Brialy) cujo nome, "Récamier", em virtude da relação conjugal, transfere-se para Angela. Ao longo do filme, ela é chamada de Madame Récamier por sua vizinha. Trata-se de uma alusão explícita a Mme. Récamier (que vivera no século XIX e fora conhecida por seu charme e beleza que acabaram por conquistar um rol de admiradores nos salões parisienses no período após a Revolução sendo que Jacques-Louis David a retratara numa célebre pintura hoje exposta no Museu do Louvre).


Aqui, a Mme. Récamier cinematográfica é a personagem-imã, capaz de atrair, por sua beleza e instabilidade, os dois outros personagens, que orbitam em torno dela sem nunca dissiparem sua tristeza, expressa na máxima: "Eu quero ter um filho". Émile, no entanto, está muito ocupado em andar de bicicleta no interior do apartamento, em produzir mise en abymes na narrativa do próprio filme, quando diz a Angela para se apressar que logo iria começar À bout de Souffle ("Acossado") na televisão. Ou seja, uma personagem de Godard queria assistir a um outro filme do próprio Godard. Não contente, eis que aparece Alfred Lubitsch (interpretado por Jean-Paul Belmondo), uma personagem que já surge com a marca do cinema, "Lubitsch", e que se oferece a Mme. Récamier como um admirador capaz de resolver seu intento materno.


Por sinal, é este é o impasse da história, o motor-narrativo: a corriqueira discordância de um casal de classe média em ter (ela quer) ou não ter (ele não quer) um filho. Acabam tendo um filme cujo sentido se dissipa nessa dicotomia a todo tempo tensionada (ela quer muito versus ele não quer nada). De um argumento usual, chega-se ao non-sense.


Está tudo ali: uma ótima mise-en-scène, o trabalho da montagem (ou da falta dele, no caso da repetição do texto), um trio de atores entrosados, cenários e figurinos coloridos como se fossem pinturas a óleo. E, no entanto, parece não haver nada, porque a história nos leva do pouco ao muito pouco. Ela não evolui: não nasce filho algum tampouco ocorre a separação do casal. Não existe qualquer sentido moral, não nos passa qualquer mensagem.


Ao final, quando Émile acusa Angela de ser "infame", por ter transado com Lubitsch em busca do tão desejado filho, Ana Karina diz: "Je ne suis pas infame, je suis une femme" ["Eu não sou infame, eu sou uma mulher", cuja pronúncia no francês é praticamente igual]. Fica a leve impressão de que não há diferença alguma, a não ser um jogo de palavras, ou melhor, um jogo de cena.

Um comentário:

Callas disse...

Fernando, fernando!
O texto sobre o Paisagem não estava neste blog? Não acho! Quero referenciá-lo aqui na Unicamp, onde tááááá!
Beijão!