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Ricardo Basbaum disse...
olá Fernando. Por acaso encontrei seu blog, que não conhecia - achei bacana, achei vivo e atento. A experiência do 'arteporextenso' mostra como o espaço do blog pode ser interessante para o desenvolvimento de um discurso (pós) crítico: é legal como a prosa pode fluir em ritmo próprio, como vocês dois [F.C.B. e V.R.] podem se revezar na dupla autoria, como os assuntos podem ser alinhados segundo os deslocamentos e viagens, como os leitores podem escrever e publicar comentários, etc etc etc. Vou voltar outras vezes e acompanhar as vozes de vocês. Mas queria exatamente comentar o artigo "Basbaum no Palácio Cruz e Sousa", que li com interesse. É lugar comum, bem sei, mas repito: fico feliz em encontrar um texto sobre meu trabalho que proponha alguma discussão - pois em geral (digo, na grande imprensa) isso não ocorre: quando se diz, não se diz direito, e quando se diz se fala do entorno e o assunto mesmo, o mais interessante - a possível polêmica - fica um tanto vaga. Enfim... Repito: gostei de encontrar seu artigo e me interessaram algumas de suas observações. Mas tenho que indicar a você algumas correções, pois você escreve ali que eu disse coisas que de fato não disse, já que na verdade penso de modo completamente diferente - ao contrário até - do que você aponta. São duas coisas principais: uma é em referência à ação do vaca amarela como participante no projeto "Você gostaria de participar de uma experiência artística?". Não é verdade que eu continue "puto com o pessoal do Vaca Amarela", nem é verdade que eu não tenha gostado da intervenção do grupo no MASC - nunca coloquei as coisas dessa maneira. Aproveito então para esclarecer: eu adorei a intervenção do vaca amarela - foi muito precisa e inteligente; a ação do vaca sinalizou um momento de virada do projeto (que eu chamo hoje de "fase 3", conforme indico no diagrama que mostrei na exposição Paralela, em SP - o diagrama está no site so projeto); em conversa com Ze Lacerda e Elisa Noronha, em julho de 2005, em Porto Alegre, indiquei meu interesse pelo que foi feito pelo vaca. Escrevi um texto (não publicado e que em breve estará disponível no site), chamado "relatório de uma visita ao MASC no dia 13 de junho de 2005", em que procuro me posicionar em relação ao episódio (texto enviado por email ao grupo). Ali escrevi: "a ação do grupo vaca amarela revela-se intrigante, ao costurar diversas camadas de sentido e introjetar o potencial de múltiplas possibilidades – as quais não cabe somente a mim, e sim a todos os interessados, investigar; sobretudo ao grupo, sujeito coletivo cuja manifestação é mais do que importante neste episódio. (...) O vaca amarela realizou um gesto (...) que contempla uma aguda observação da cena artística e institucional de Florianópolis e do Brasil, produzindo uma manobra estratégica e aberta de intervenção (cujos desdobramentos podem ser amplamente cultivados e trabalhados)." Se vejo a ação do VA com interesse para meu projeto - pois indica esta tal de 'terceira fase' do projeto, assinalando o momento em que volto a me aproximar das intervenções realizadas, depois de estar um tanto afastado durante a 'fase 2' (em que o objeto começa a circular sem minha intervenção direta, sendo conduzido pelos participantes) -, procuro demonstrar que se a acão do VA foi de fato 'interessante' (e eu acho que foi) é porque ela ultrapassa as dimensões do meu projeto para revelar questões do circuito de arte local e nacional, chamando a atenção para questões concretas que se estendem para além de "Você gostaria de participar de um experiência artística?". Ou seja, este é um traço importante de meu projeto: "Ainda que o objeto físico seja o elemento real e concreto que deflagra os processos e inicia as experiências, na realidade seu papel é trazer para o primeiro plano certos conjuntos invisíveis de linhas e diagramas, relativos a diversos tipos de relações e dados sensoriais, tornando visíveis redes e estruturas de mediação." A ação do VA é significativa porque soube precisamente trazer à superfície limites e contradições de um certo circuito de arte e seu tecido institucional - do qual faz parte, como grupo ou coletivo -, tornando esses limites produtivos: assim está escrito, no relatório mencionado: "o grupo vaca amarela doou o 'ato de doação', não apenas o gesto generoso de relacionar-se com o Museu a partir de um acréscimo ao seu patrimônio mas sobretudo a produção de uma fresta a partir da qual um processo vivo de produção de pensamento é deflagrado no interior do espaço institucional – cabe aos outros ('nós e eles') prosseguir no desdobramento dos fios apontados. Ou seja, o gesto do grupo vaca amarela proporcionou a possibilidade do MASC incorporar em seu acervo o germe de uma dinâmica que tem como seu principal objetivo a produção do elemento vivo a partir do qual novos processos são deflagrados – nos termos concretos dos fluxos de seu funcionamento alinhado à dinâmica dos processos de invenção." Bem, espero que esteja claro que vejo a ação do VA como interessante e importante. Entretanto, um aspecto do grupo deixou-me intrigado e me fez produzir algumas críticas: desde o momento em que a ação foi deflagrada, não tive mais contato com o VA, que nunca mais respondeu às minhas tentativas de contato: procurei entrevistá-los através de vídeo ou email; enviei por email cópia do relatório; forneci senha para utilização do espaço do site para publicação da experiência realizada; convidei-os para participar do debate realizado no MHSC no dia 06/11/06 - nenhum destes gestos foi até agora (cor)respondido. Vejo estas tentativas de contato como gestos para que o próprio grupo afirme as questões que lhe interessa, de modo direto – que de alguma maneira se coloquem em torno das questões por eles deflagradas, certamente mais importantes que o meu projeto. Não há como não perceber no VA um curioso voyeurismo, em que buscam a invisibilidade enquanto sujeitos que de certa forma deixam de lado seus corpos (corpo coletivo) para perversamente habitar o corpo do outro. Penso que isso é também importante e interessante de ser discutido - mas é algo que não se fala... De todo modo, vejo que o VA agiu de modo claro e contundente, deixando importante marca em "Você gostaria de participar de uma experiência artística?" - gostaria, por certo, de ouvir outros ruídos... Mas Fernando, há um outro ponto em seu texto que não faz muito sentido (há uma clara distorção de sua parte): afirmar que "os créditos de toda a história não ficam para o outro, mas sim para o Basbaum. (...) Ou será que os nomes do Vaca Amarela ou mesmo do Cássio Ferraz vão para a Documenta? E se for, vai ser nota de rodapé ou então em algum lugar do site do projeto. Quem vai estar no catálogo, quem vai viajar para a Europa, quem vai engordar o currículo vai ser o Basbaum." Bem, está claro que o projeto "Você gostaria...?" não envolve qualquer 'competição' por 'créditos artísticos' ou 'espaço em catálogo': todos os participantes realizam ações produtivas que se justificam plenamente em si mesmas, afirmando um lugar a partir do qual outros processos podem ser deflagrados - há uma produção real de redes de contato e elaboração de uma discussão que acaba por construir seu próprio fluxo: o website do projeto foi construído de modo a disponibilizar ferramentas de publicação aos participantes, que trabalham pela positividade de seus próprios discursos, sem passar por minha mediação (há os limites do site e os limites do projeto - estes não são escamoteados mas sim trazidos como elementos do jogo proposto) - ou seja, o website está no espaço coletivo da esfera pública informático-mediática. Assim foi concebido e desenvolvido o projeto desde seu início, em 1994 - a atual colaboração com a documenta 12 apenas amplifica a escala da proposta, colocando novos desafios frente a um momento de forte visibilidade.Fernando, escrevi talvez demasiado, mas fiquei empolgado pela possibilidade de conversa com 'arteporextenso' a partir de suas observações... Um abraço, Ricardo
12.12.06
Ricardo Basbaum responde
Crítica da crítica: Da caretice institucionalizada - outra vez
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De qualquer modo acho que a questão é mais embaixo. Por exemplo quando a Tejo demostra os tramites dela e do artista para transporte do colar de marijuana. ela diz que há a criação de uma tensão gerada nos limites entre o campo da arte e o campo da lei/estado/crime, sei lá mais o quê...
bobagem pura. O que há é uma negociação/agenciamento (e aqui desenvolvo uma crítica a esses termos/procedimentos para a arte) para fazer espetáculo sem correr os devidos riscos. Quando Hélio coloca a turma da mangueira com os parangolés no museu, o faz sem negociação, aí sim há a excitação de contradições. O Hélio tinha relações com bandidos e corria todos os riscos que essas relações impõem. Agora olha a diferença: o cara quer tranportar droga ilegal sem correr risco algum, sendo respaldado pelas instituições artísticas.
o Zizek fala disso, de que na contemporaneidade queremos elimiar os riscos da vida. Ele faz troça dos cafés descafeinados, doces sem açúcar, sexo sem risco como o sexo virtual. par ele isto não constitui uma relação efetiva, mas uma fuga dela. Covardia pura! Neste sentido prefiro até as experifmentações mais formais. Elas são mais sinceras.
[Ana Lúcia Vilela]
pesquisador preguiçoso
suas sugestões seguintes "para a próxima bienal", que pretendem explicitamente criar alguma graça, só conseguem reafirmar o senso mais comum possível que se faz sobre arte contemporânea, comentários que nem mais conseguem criar irritação na gente. comentários, enfim, que um analista de sistemas (grosseiro) faria - porque um analista de sistemas lúcido e inteligente pode reconhecer que, da mesma maneira que um artista não tem o direito de falar disparates sobre análise de sistemas, pois não entende do assunto, evidente, não sabe como funcionam os mecanismos, etc., um analista de sistemas também não tem o direito de falar disparates sobre arte contemporânea, ou literatura, ou filosofia.
quer dizer, direito até tem. mas ... assim, também nos dá o pleno direito de dizer, sem qualquer problema, sem qualquer culpa e sem hesitação, que o comentário está plenamente equivocado, está reafirmando o senso-comum, e nos dá também o direito de dizer, por fim, que tal comentário não é digno de quem possui um espaço privilegiado no jornal e um mínimo de pensamento crítico sobre as coisas.
thiago momm, dessa maneira, perde 15 pontos de sua inteligência - os créditos que havia conquistado em crônicas como sociologia da balada - e entra para a comunidade dos "pesquisadores preguiçosos".
[V. R]
Da caretice institucionalizada - de novo
Ana,
segue em anexo as críticas de Juliana Monachesi e do Fabio Cypriano à 27ª Bienal de SP. Apesar de a Juliana ser mais severa com a mostra, o Fabio coloca algumas coisas bem mais pertinentes (mesmo que seja para dizer que ficou satisfeito com a exposição). De qualquer forma, ele fez pensar naquele trabalho de Laura Lima – na relação explícita que tem com os Parangolés, mas que na verdade deixa o público apenas desfilar com as roupas naquele curto-espaço-de-boutique que a gente entrava (com direito a fila e tudo). A crítica é ácida de Laura Lima ou será que ela não é exatamente aquela quem transformou Oiticica naquela bobagem? Agora tem uma coisa: quando o Hélio entrava com os Parangolés, ele despertava um certo desconforto do público do museu, que não conseguia decodificar aquilo como arte (num primeiro momento). Era uma invasão – no sentido literal. O trabalho da Laura Lima, no entanto, faz exatamente o oposto: as pessoas sabem se portar diante de roupas em exposição, sabem prová-las, sabem olhar-se no espelho. Sabem e gostam, por fim, de tirar fotos com elas (mais um souvenir da Bienal, para dizer aos amigos: estive lá). É exatamente o oposto da invasão, da intervenção. Esse é o problema do trabalho (que o afasta completamente daquela história do Oiticica), porque sua obviedade é tão aparente/transparente como o próprio material de que as roupas são feitas. Outra questão é pensar o trabalho do Superflex (Guaraná Power) e do Marcelo Cidade (bloqueador de celulares) que não puderam se efetivar nos limites institucionalizados da Bienal. Mesmo que tenha virado o prato predileto da imprensa é preciso pensar seriamente isso. Aquele trabalho do vídeo com a Elke Maravilha, que vimos na Mostra Fiat Brasil, era, na verdade, para que a Elke levasse o povo para ver a Bienal. Dizem (Adriana Barreto e Bruna Mansani, que participaram da mostra me contaram) que a sra. Lisette Lagnado não permitiu. Acho essa censura pior do que as relatadas pela imprensa (Superflex e Marcelo Cidade).
Mando também em anexo, a entrevista que a Néri Pedroso fez com a Cristiana Tejo. Achei-a simplesmente brochante. Ela é a expressão mais bem acabada dessa institucionalização que estás percebendo nas artes: uma super especializada que começa a entender mais os problemas da instituição do que a querer pensar as artes para além dela. Em verdade, foi um verdadeiro asco ler aquela fala bem comportada. Os caras não conseguem mais vibrar com arte, não há mais sedução, envolvimento (apesar de reinvidicarem o corpo como campo de trabalho...). É um eterno papo sobre as relações entre artistas e instituições (esse é o perigo de tua tese, cair neste debate infernal e infindável que, mesmo que você vá criticar, acabe por afirmar, lembre-se do mestre Henrique Pereira Oliveira). Ninguém consegue bater o pé marcando o ritmo involuntariamente porque simplesmente abandonou-se a vontade de dançar. Estou cada vez mais de acordo com o Victor: é preciso bater e dizer os nomes, porque a caretice está generalizada (como já percebeu o Cássio Ferraz).
{F.C.B]
Mostra Fiat Brasil
De qualquer forma, uma experiência e tanto. Ao contrário da Bienal, que faz você se perder, se atordoar, pela quantidade de trabalhos, a Fiat Brasil realizou um recorte bastante corajoso por parte do grupo de curadores: não mostrar tendências da arte contemporânea brasileira (trabalho inoportuno que críticos e curadores acreditam fazer a cada exposição, lembra-me a coisa do Prometeu), mas sim linhas de ação atuais no campo artístico múltiplo que é o Brasil.
Destaque total para Marta Neves, com “As 12 Tarefas”, vídeo em que mostra Elke Maravilha – este ser assustador e maravilhoso – buscando gente das ruas de São Paulo para ir ao museu (tomei conhecimento, posteriormente, que a idéia era levar o pessoal para visitar a Bienal, mas a sra. Lisette Lagnado recusou-se terminantemente: ótimo, é isso mesmo, vivendo e aprendendo a como viver juntos...). Ao levá-los ao museu, Elke não realiza o obtuso trabalho da maioria das ações educativas dos museus que tenta prover explicações razoáveis para os trabalhos. Ao contrário, começa a perguntar para cada um, seu signo e, a partir daí, começa a narrar (retoma a coisa da narrativa oral, maravilhosa!) o que está previsto para ele. Pois bem, aquele que a ouve falar sobre seu signo, também se expressa, trazendo suas experiências para o museu não a partir do pretexto artístico, mas sim de sua própria vida. Este vídeo deveria ser a base para qualquer trabalho digno de arte e educação que quisesse se arriscar por diferentes veredas.
Ainda: três fotografias de Fabiana Wielewicki. Eu as havia visto uma reprodução de jornal e não havia dado muita atenção. É impossível, no entanto, pensar neste trabalho sem a clareza do acabamento que ela o realizou. Trabalha com uma questão que, particularmente, tem me interessado muito ultimamente (até mesmo em função da curadoria que eu e a Ana Lúcia Vilela realizamos no Museu Hassis, a exposição “Horizontais”): a paisagem. No entanto, ela constrói uma cena em que a paisagem é interferida por uma outra paisagem, onde os prédios da paisagem real são substituídos por imagens-clichês enquadradas de paisagens ideais. Um jogo de bate e rebate em que a própria fotografia (com o corpo da artista em cena) também formula/simula uma paisagem.
Daniel Trench e Felipe Cohen também exercitam a paisagem, desta vez em vídeo, num trabalho maravilhoso, onde surge a linha do horizonte que separa o mar do... pano branco que se agita ao vento no lugar do céu.
Trabalhos excitantes: Henrique Oliveira, com seus tapumes, arrebatam qualquer narrativa. É aquilo dali e encerrar discursos ali é pura erudição.
O trabalho assinado por Vulgo (MG) me fez lembrar um Traplev (mais sofisticado e com mais dinheiro no bolso): projeto de instituição artística móvel, com direito a jardim no telhado dos carros que realizarão a itinerância.
Bruno Faria tira um sarro generalizado com um vídeo de leilão de obras de arte. Ao lado, vê-se a tela absurda que ele comprou.
Havia ainda dois vídeos particularmente interessantes que não anotei os nomes: uma mulher em um balanço que se movimenta sobre um lago; uma fumaça roxa que se esparsa em um campo.
Made in Florianópolis, vê-se ainda Raquel Stolf (com seu grilo) e Adriana Barreto com Bruna Mansani, que trabalham com uma proposta de interação entre público e artistas e trabalhos: sortearam um felizardo que viajou com elas por um dia na cidade do Brasil que ele escolhesse (o idiota escolheu o Rio de Janeiro...). Com isso, ele passou a também a assinar a obra. Em uma prateleira, fotos que contam o périplo do grupo: ali se vê toda uma narrativa.
[F.C.B]
Cildo Meireles
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Saindo da sala de "Babel", você vê outra, logo a frente. Olha, procura e nada. Apenas um foco de luz redondo em uma parte do chão. No resto da sala, o vazio. Ou seja, você sai daquela polifonia de "Babel", daquela excitação que também é visual e se depara com um pequeno cubo de madeira iluminado apenas por um foco de luz redondo preenchendo toda aquela sala. É bom deitar-se, como criança, para ver de perto aquele cubinho milimétrico, com diferentes tons (diferentes madeiras dentro do mesmo espaço milimétrico?) que torna o menos, o mais – que faz do pouco, o muito.
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Mais a frente, na outra sala, via-se um deck de madeira. Você chegava próximo e percebia que era um trapiche. Ao invés de mar, folhas impressas que se passavam por água. Novamente a experiência da imensidão, da impossibilidade – que estava em “Babel” (como abarcar tudo isso?) e também no cubo de madeira, chamado “Cruzeiro do Sul” (o que fazer com tão pouco?) – dessa vez física. Experimentar o trabalho “Marulho”, significa olhar a sala, suas paredes brancas (impossibilitando qualquer formação de uma paisagem), lá para longe e querer ir até lá e não poder chegar. Fique no trapiche, na superfície, na forma cúbica.
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Sou particularmente crítico com curadorias, mas gostei muito desta, assinada por Moacir dos Anjos. Talvez fosse dispensável as escritas propositivas de Cildo Meireles que se encontrava entre a sala de “Cruzeiro do Sul” e de “Marulho”. De qualquer forma, muito interessante a montagem e seleção dos trabalhos. O curador potencializou os trabalhos e não apenas fez amarrações temáticas.
[F.C.B]
fragmentos modificados de e-mails que enviei para amigos:
fui para são paulo, final de semana, para ver bienal e contornos. (e, para dizer a verdade, gostei mais dos contornos, rs). de última hora, entrei numa dessas excursões, ônibus que chega sábado de manhã e volta domingo à noite, rs, mas valeu a pena.
a bienal, de maneira geral, parece uma feira de domingo - já que nunca tinha ido, levei um susto com isso. e o tema, além de pedir legitimidade à crítica internacional, parece servir mesmo para indicar que o evento faz viver junto trabalhos fortes e medíocres. como partiu para um viés fortemente político - e num sentido político muito pouco barthesiano, a meu ver - a maioria dos trabalhos soa literalizado demais, com objetivo claro de intervenção e denúncia. e confesso que desconfio um pouco de tudo isso enquanto saída.
por outro lado, além da bela panorâmica do mam, na oca, vi o trabalho de cildo meirelles, regina silveira, e león ferrari, na pinacoteca - esse último, certamente, o que mais me impressionou, até porque ainda não conhecia. león é um argentino de buenos aires, tem perto de 90 anos e está produzindo como se tivesse 30. ele possui, parece, dois eixos de trabalho - um, bastante político, polêmico, provocou grande discussões com a igreja na argentina, pois possui ataques diretos ao cristianismo; e outro, mais formalista, onde trabalha com uma série de desenhos no espaço, feitos de arame, e outra série de escrituras em quadro.
essa última série, principalmente, me assombrou. acho que o trabalho de león - este, principalmente - é uma possibilidade interessante de tensionamento da literatura a partir das artes visuais - algo como uma destruição da escritura pela visualidade, apagamento e esvaziamento de qualquer subjetividade (de maneira semelhante, poderia pensar que herzog destrói o limite). é algo como um cy twombly mais radical, parece.
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voltei de são paulo ontem, com novidades, e muito entusiasmado com muitas coisas, principalmente com o trabalho de león ferrari, um artista argentino que tem uma série de quadros chamada escrituras, e com a exposição de cildo na pinacoteca.
o trabalho de cildo, meu deus, dá vontade de chorar. a montagem, feita por moacir dos anjos, coloca o pequeno cubo de cildo entre a poesia-instalação de marulho e o caos-instalação de babel, último trabalho de cildo, provocando uma encenação e dramatização-limite do espaço.
e o trabalho de ferrari, você conhece? seu trabalho com escritura em quadros vem ao encontro de muitas coisas que eu vinha pensando a partir de barthes e foucault, como a demolição do sentido, do sujeito, da escrita, mas nada do que eu havia visto até então me permitia pensar com tanta precisão: é isso! e oferecia uma solução tão bem acabada ao problema. quando vi o quadro de ferrari, na minha frente, parece que vi concretizado tudo que eu vinha anotando no papel faz meses. acho que ferrari é um twombly mais radicalizado, mais tensionado, pois apaga na escrita qualquer possibilidade de sentido, faz a língua desaparecer. (...) como vi seu trabalho logo que cheguei a são paulo, fiquei o restante da viagem assombrado com aquilo.
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a exposição da fiat decepcionou. salvo alguns trabalhos, está uma exposição confusa. para começo, da maneira como vejo, existem equívocos graves de montagem. um dos vídeos, que parecia bom trabalho, mas pedia silêncio, foi traído pelo montador, que o deixou exatamente ao lado de outro absolutamente barulhento. e na etiqueta de cada trabalho, um texto explicativo que não se sabe de onde vem - num dos textos, o de tapume, dizia que o trabalho se fazia no espaço, mas era algo que praticamente não saia da parede.
em relação aos trabalhos, muitos são intervenções na cidade e aparecem somente enquanto registros, como um depois sem força mais alguma - e cabe perguntar se alguma vez tiveram; muita web art deslumbrada, vazia, sem qualquer coisa dentro, que só de ver já dá um cansaço - teve uma que a monitora me explicou duas vezes o que tinha pra fazer e continuei sem entender (e isso que sou alguém da geração do computador); e, ainda, principalmente, trabalhos que se fazem a partir de uma sacada que se acaba e esgota no primeiro olhar.
e parece que teve docinho e sorteio de viagem na abertura - a mim, que cheguei depois, só papel e fotos.
[V.R]
Arte grega
É impressionante como, para os gregos, a arte estava na vida. Esta discussão – que a arte contemporânea reinvidica para si – de aproximar arte e vida é coisa antiga para os gregos. As coisas do mundo (vasos, discos, mesas, arquitetura, etc.) eram artisticamente processados em algum momento de sua confecção. Outra coisa que impressionou muito foi ver os vasos e utensílios de mesa. Alguns são enormes e a camada pictórica é bastante forte. Trazem narrativas sobre a vida, sobre a cidade.
A exposição da FAAP, com obras do acervo do Museu Pergamon, de Berlim, tem o grande mérito de trazer peças anteriores aos gregos e mesmo posteriores (romanas) para podermos observar o que foi o tal do milagre grego. Eles saem de uma escultura dura, cujo corpo é rígido e quase sem forma, para chegar numa escultura repleta de traços e de volume. E, principalmente, de movimento. É nos trajes, por sinal, que se pode melhor ver este movimento. Nas dobras, cortes que as roupas proporcionam que os artistas gregos se divertiam. Era ali que mostravam sua virtuose. [F.C.B]
Só não precisava de telhado, escadarias, jardim artificial, entre outras coisas para montar esta exposição. Dizer que o Jorge Coli andou criticando isso (não li). Ele realmente estava certo. [F.C.B]
Museu Paulista que é também do Ipiranga...
Museu Paulista
Museu esquizofrênico até no nome. Museu Paulista mas também conhecido como Museu do Ipiranga. Projetado pelo Império acabou sendo realizado pela República. A pesquisa e a expografia do Museu se esforçou e ainda se esforça em desfazer a imagem imperialista, mas é difícil não lembrar de D. João, D. Pedros e aquela laia toda em meio àquela arquitetura monumental. Tenho certeza que estes palácios tinham pé direitos altos para aguentar as cagadas destes caras (Niemeyer também pensou nisto quando fez Brasília, podem perceber...)
É um museu histórico no pior sentido do termo. Armas, urinóis, Oscar Pereira da Silva, carros de bombeiros, mais urinóis, Pedro Américo, mobiliário. É impressionante como persiste uma certa expografia. Ainda bem que para o ano que vem está planejada toda uma transformação nas exposições.
“Independência ou morte” é gigantesco. Impressiona pelo tamanho e também por ter sido realizado um ano antes, apenas, da Proclamação da República. Nasceu como ode ao Império e mal trocava as fraldas quando virou motivo de chacota republicana. Sua leitura hoje é recheada de risos e deboches. É que tanto se fez piada, na própria historiografia brasileira, com a história do D. Pedro estar com diarréia às margens do Ipiranga e coisa do tipo, que, cada vez que eu olho para aquele quadro, eu me lembro dessas coisas. A ironia substituiu a idéia de uma história edificante. Os imperialistas se ferraram nas mãos dos republicanos. E sobrou para o Pedro Américo.
Em exposição, ainda, várias telas de Oscar Pereira da Silva, onde pintava feitos imperialistas em pleno ano de 1922. Semana de Arte Moderna acontecendo e tudo mais, e ele lá, com seus traços acadêmicos (por sinal, foi aluno de Victor Meirelles). São coisas que esquecemos: ao mesmo tempo em que se produzia um movimento modernista – que se tornaria hegemônico – um discurso conservador (tanto plástica, quanto historicamente), como o de Pereira da Silva, continuava seu rumo. [F.C.B]
palavra-de-ordem
e, no mais, é palavra-de-ordem, é o faça!, é o tu! - é experiência muito pobre com a linguagem: experiência de poder, de ordem, ideológica, que não oferece tensão nenhuma com o normal. é tensão muito frouxa com o mundo.
(sem falar nos problemas éticos - que o vaca amarela entendeu muito bem; aliás, a melhor intervenção no trabalho foi a do vaca: a única que suspendeu mesmo a lógica, que desviou, pois todas as outras estão dentro da ordem, da palavra-de-ordem, do faça como eu peço; e é curioso pensar que basbaum "não gostou" - pois doar o objeto ao museu foi o gesto que saiu fora do regulamento, da regra dele)
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dia desses, acho que na última revista cartaz, naquela página ineditus, também um sujeito dizia: pendure maças em árvores, fotografe e mande para este e-mail, etc. uma coisa assim, sempre dessa maneira - em segunda pessoa. fiquei pensando - por que não pendura ele mesmo e fotografa? se a idéia foi dele, a grande idéia, ele que realize.
[V.R]
Basbaum no Palácio Cruz e Sousa
NBP é um objeto criado por Ricardo Basbaum. É um troço estranho mesmo, basta olhar na foto. Não é bonito, não é atraente, não é útil. Não daria nem um caldo. Pelo contrário, é estranho, é grande demais, enfim, é um trambolho. A idéia, no entanto, é que as pessoas se apropriem do objeto e façam dele o que bem entenderem. Ou seja, a proposição artística é apenas incitada pelo objeto. Basbaum propõe, em verdade, vivências em torno dele.
Já comi uma cuca de banana dentro do NBP. Isso mesmo. Cássio Ferraz, em edição do Espaço Contramão, decidiu fazer uma cuca gigante usando o NBP como forma. O Grupo Vaca Amarela, por sua vez, mandou o NBP para o acervo do Museu de Arte de Santa Catarina. A polêmica, até hoje não resolvida (até onde sei o Basbaum continua puto com o pessoal do Vaca Amarela), despertou um problema em torno do objeto. É possível se fazer tudo, ou quase tudo, que se quiser com o objeto.
Vaca Amarela problematizou o objeto ao enviá-lo para o acervo de um Museu de Arte. Tudo o que o objeto não se quer ser é acervo. Quer ser vivo, circulante, produtor de sentidos. No entanto, Vaca Amarela quis produzir sentidos pela via da negação. Basbaum não gostou.
Tem uma questão que me incomoda: acho interessante essa coisa do objeto não ser obra de arte em si. Ele precisa do outro para ser ativado. Isso é ponto comum. No entanto, os créditos de toda a história não ficam para o outro, mas sim para o Basbaum. Legal, criar um objeto, jogá-lo ao mundo e ficar colhendo os créditos como quem apanha bananas no quintal do outro. Em última instância, é isso mesmo o que ocorre. Ou será que os nomes do Vaca Amarela ou mesmo do Cássio Ferraz vão para a Documenta? E se for, vai ser nota de rodapé ou então em algum lugar do site do projeto. Quem vai estar no catálogo, quem vai viajar para a Europa, quem vai engordar o currículo vai ser o Basbaum.
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Ricardo Basbaum é referência para a arte contemporânea. Tanto seus trabalhos artísticos quanto sua produção teórica são discutidos exaustivamente nos departamentos de artes visuais pelo Brasil e, particularmente, aqui no CEART/UDESC. Vez por outra, ministra cursos por lá.
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Sei que vou ser malhado por este comentário sobre o Basbaum. Mas foi a impressão que tive ao estar no museu. Por sinal, essa coisa de ele estar no Museu é também um problema... Pode estar na sala de exposições, mas no acervo, não. Mas não vou entrar nesta questão. Informações sobre o projeto de Basbaum podem ser encontradas no http://www.nbp.pro.br/
notícias
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cristiana, no primeiro dia, fez uma abordagem mais histórica da arte no século 20, procurando mostrar a relação do artista com a política, os museus e a história. dentro desses problema, falou de duchamp como um estrategista – o que faria dele, também, um contemporâneo; falou das vanguardas, e dos primeiros questionamentos da relação entre obra e mercado.
no segundo dia, partindo de bauman, cristiana introduziu a maneira como o sujeito de hoje lida com o espaço e tempo, dizendo um pouco das diluições de algumas fronteiras, a criação de outras, relação centro / periferia, etc. cristiana discutiu questões mais contemporâneas, falando da condição do artista hoje – exposto a uma “identidade móvel”, a uma relação mais “cosmopolita” e estrangeira com o outro. parecia interessada em enfatizar a relação do artista com seu momento histórico, e de como seu trabalho é construído e afetado também na relação com a história e sobretudo com as instituições, que parece um problema central na discussão de artes visuais.
no final, disse também de sua relação com a cidade e os artistas de recife, na condição de coordenadora e curadora de artes plásticas da fundação joaquim nabuco – e de como a cidade foi se tornando mais aberta à arte contemporânea somente a partir de meados da década de 90, por conta de um interesse surgidos nos artistas de dentro em construir outras soluções para a arte na cidade.
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na oficina de carla, a ênfase foi na prática da crítica. num primeiro momento, carla construiu uma conversa em torno de alguns exercícios de descrição de obra, procurando discutir a maneira singular de cada pessoa olhar para um objeto - questão que também atravessa seu trabalho de artista. num segundo momento, carla sugeriu algumas discussões em torno do exercício da crítica, partindo de seus textos e dos textos das pessoas que estavam fazendo a oficina.
carla sugere uma crítica que “construa um discurso paralelo ao trabalho do artista”. por vezes, em seus textos, carla nem cita o nome do artista e de seu trabalho, propondo uma intervenção textual mais aberta e menos valorativa. se sua proposta parece sedutora no sentido de fugir do discurso de valoração, ao mesmo tempo tendo a desconfiar da proposta textual enquanto dispositivo analítico, já que carla abre mão da própria materialidade do trabalho enquanto objeto de análise. carla, ao mesmo tempo, sugere uma discussão do que seja crítica, hoje: um discurso que legitime o artista? um discurso que dê conta do trabalho? parece, também, questionar se ainda faz sentido um texto que discuta valor. enfim, seus textos parecem querer ficar num limite entre crítica e ficção, até porque carla escreve muito bem. e nisso, penso, há perdas e ganhos.
[V.R]
colunismo cult
é tudo mentira o que andam dizendo pelas esquinas de florianópolis - que a construção dos shoppings representa os grandes acontecimentos culturais da cidade nos últimos tempos.
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florianópolis parece entusiasmada com cultura. semana passada, muitas coisas na cidade. só na terça-feira aconteceu a abertura do rumos, de artes visuais, no MASC; estréia do novo espetáculo do Cena 11, no teatro do CIC; recital de piano da alberto heller, no TAC; e ainda terça com poesia, na UBRO, com o poeta mauro faccioni filho.
(também tinha um evento de performance no Palácio Cruz e Souza, mas estava tão bem organizado que não consegui descobrir o horário certo das performances - acabei desistindo de esperar em frente ao museu, na quarta, e mais uma vez, por acaso, quando estava voltando para casa, assisti pedaço do espetáculo de rua DESVIO, que propõe intervenções muito interessantes na cidade)
ainda teve, no restante da semana, curso com a bianca tomaselli, sobre modernismo em santa catarina, na univali - onde, entre outras coisas, bianca questiona a pertinência de pensar a existência de um modernismo no estado, já que nas décadas de 40 e 50, com estado novo e governo vargas, existe uma organização legimitada dos discursos em torno desse movimento, perdendo sua potência anarquista inicial.
ainda teve EmCena Catarina, sexta-feira, no SESC-Prainha, com a peça S.O.S. Uma Mulher Só. ainda teve, ainda, no sábado, lançamento do curta-metragem Eternáu, de um grupo de porto alegre, no espaço ARCO, com direito a festa depois com alejandro tocando até o amanhecer.
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- mas isso parece coluna social!
- pelo menos é cult.
[V.R]
O gosto do outro
Certo, Victor. Concordo com você em relação ao processo muitas vezes massificante de se levar 30, 60, 500 crianças para os museus. O que ocorre é que as visitas, por vezes, tornam-se visitas de caráter civilizatório, o que é terrível. Por sinal, acho as ações educativas nos museus, na maioria das vezes, deseducadoras de uma possível sensibilidade estética do público.
Com relação às diferenças entre os sujeitos, também não creio que elas se encontrem, de maneira determinada, na posição social/classe. A micro-história está aí para mostrar isso, a literatura moderna e contemporânea também e aí por diante. Agora, há uma coisa (que, por sinal, o Hélio Oiticica, a Lygia Pape e esse pessoal já haviam percebido na década de 1960) que diz respeito às diferenças sociais e ao modo como elas desencadeiam profundas diferenças culturais. Os “Parangolés”, do Oiticica, são isso: objetos-híbridos, que transitam entre culturas/classes distintas, que só puderam existir porque o Hélio e as Lygias subiram o morro, dialogaram, produziram e conviveram com a gente de lá. Com isso, puderam descer o morro e entrar no MAM, causando o maior furor, exatamente porque os “Parangolés” traziam um código cultural/social que ninguém que estava no MAM era apto a entender. Do mesmo modo, acho que não compreendemos bolhufas do “caldo cultural” das favelas seja daqui, seja do Rio, seja de Nova Délhi. Estamos preparados para entender o nosso discurso – a refletir num eterno jogo de espelhos - e pouco nos importamos com os de outrem.
E não podemos esquecer que é sobre esta diferença proposta por Hélio e Lygias que está engendrado discurso da arte contemporânea de hoje em dia no Brasil. A maior parte dos artistas atuais se remetem a Oiticica, Clark, Pape, entre outros como referências centrais. No entanto, como a tese da Ana Lúcia Vilela está percebendo, eles largaram mão da experiência (uma experiência extremamente ligada ao outro/diferente, à política e a uma certa narratividade do procedimento) e retornaram ao circuito das artes com uma voracidade e voluptuosidade impressionantes.
Laura Lima, por exemplo, coloca dois indivíduos em uma roupa que só caberia um, para poder fazê-los se tocar, se experienciar, etc. Isso é totalmente inspirado nos macacões da Lygia Clark. No entanto, os trabalhos desta última eram para ser vivenciados, interagidos entre as pessoas. Já o da Laura Lima, as pessoas que executam as ações são contratadas e filmadas/fotografadas (para entrarem em Bienais). Em última instância, o registro é mais importante que a ação. É terrível: eliminou-se o gosto do outro. E isso está também na política das instituições museológicas que acabou por afastar o grande público de si. [F.C.B]
ainda, diferenças
quanto às diferenças, não creio que elas se encerrem em diferenças de classe. posso estar equivocado, mas vejo algo determinista em sua pergunta. diferenças são também construções, descontinuidades, desvios que se fazem no discurso e na história. e de qualquer maneira, trazemos histórias singulares. você, como historiador, sabe disso melhor do que eu.
[V.R]
Diferença entre iguais?
Construir diferenças entre iguais? Isso te parece possível?!? A potência não está apenas no objeto em si, no trabalho que o artista apresenta, não mesmo. Está também em sua capacidade de criar relações com o diferente e isso é praticamente impossível no atual panorama (não te esqueças, o dito biscoito fino das massas é uma expressão incorreta posto que jamais as massas participaram de maneira ampliada deste processo). E se isso for sonho modernista – querer ampliar o público – pois bem, meu nome é Fernando Modernista.
«F.C.B»
biscoito fino
e não tenho tanta certeza, mas não lembro do tempo em que a arte foi algo presente na vida das massas. quer dizer, o biscoito fino às massas de oswald parece um sonho modernista frustrado, não te parece? leminski também dizia: poesia não vende, e é bom mesmo que não venda. pois talvez o vender, da maneira como vão as coisas, signifique não a grande vida da poesia, da arte, uma espécie de salvação, mas justamente sua morte. isso não parece a você?
[V.R]
Ainda sobre a falência
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TRAPLEV É IMPORTANTE
Nesse sentido, considero o trabalho de Traplev importante. Ele faz desta apatia, deste marasmo, desta falta de expressão (por vezes até facial dos artistas, por isso, os atores me agradam mais na convivência, pelo menos eles sabem se divertir com seus próprios rostos) motivo de seu trabalho. Claro que isso pode ser uma faca de dois gumes: à medida que ele se envolve cada vez mais com estas questões ele terá uma cruzada pela frente: se a situação melhorar, ele terá que produzir seus trabalhos artísticos e a coisa do reclame sobre a política cultural ficará fora de lugar. Para onde irá seu trabalho? [F.C.B]
* * *
ROBERTO FREITAS TAMBÉM
Outro artista fundamental é o Roberto Freitas. Transformou sua casa em galeria. Para além de sua insatisfação com o sistema atual das artes locais, há uma proposta efetiva. E isso é importante. Sua casa está geográfica-estrategicamente localizada: ao lado do CEART/UDESC. É claro que o problema é o de sempre: até onde vai a reverberação da ARCO? Será que ela não seria mera extensão do CEART? Será que há espaço para diálogo com o outro, com o diferente ali?
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MUSEU NÃO É COISA PRA POBRE
Por sinal, o problema que apontei para a ARCO também se refere aos museus. E isso independe de estar próximo ou não do centro de produção de artes das cidades. O que ocorre é que não há espaço para o outro, para o diferente. Não conheço nenhum programa de incentivo à classe baixa aos museus. Os programas educativos fazem o seguinte: encher os museus de crianças, que podem ser educadas, que vêm em turmas, que gostam ou não gostam dos trabalhos sem maiores problemas e que multiplicam o número de visitante/mês, justificando socialmente a estrutura. A verdade é que os museus, pelo menos em Fpolis – mas, na verdade, também em Porto Alegre, Curitiba, São Paulo e Rio de Janeiro, que é o que eu conheço – são destinados a um determinado público e não faz o mínimo esforço para chegar ao que seria diferente deste público. Mesmo que as estatísticas mostrem uma drástica diminuição do público dos museus, nada é feito no sentido de pensar isso. Eu tenho uma explicação para isso: o declínio econômico brasileiro pós-ditadura levou milhares, ou melhor, milhões a adentrar nas classes “média baixa” e na própria classe dita “baixa”. Automaticamente, o público se tornou rarefeito. Mas os museus, mudaram? Por mais que se argumente que surgiram programas e agendas culturais, uma interdisciplinaridade, etc. elas são, em sua maioria, destinadas para o mesmo público. Como melhorar a apreensão e vivência deste público nos museus? Como pagar os artistas? Como melhorar as reservas técnicas? Como tornar os acervos seguros? E, particularmente, no que diz respeito a esta última questão, há um preconceito dramático nas direções e corpos técnicos dos museus. Não se leva o pobre para o museu porque se tem medo que eles roubem (ou venham a roubar) peças do museu. Ou então que toquem nas obras, que as derrubem, enfim, que não sejam civilizados. É isso aí. Pobre = ladrão. É isso aí. Não estou dizendo nenhuma besteira. Esse preconceito que atravessou o século XX, vindo do XIX, chega forte e vivo ao XXI, misturado com um quê de profissionalismo e tecnicismo. Isso é foda. Por que não levar funk para o museu? Por que sempre são as mesmas orquestras eruditas a se apresentarem nos museus? Por que ao invés de fazer ação educativa junto às escolas, não ir aos conselhos comunitários? E ficamos sempre na mesma bolha que se, pelo menos, estivesse inchando, seria melhor. Mas o pior, no entanto, é que ela cada vez mais murcha, murcha, murcha... [F.C.B]
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MAURÍCIO MUNIZ TEM(^) MUSA(S)
Ao Chicão (in memorian)
Por isso gosto de Maurício Muniz. Largou a medicina (que lhe traria dinheiro), a arquitetura (que lhe traria algum dinheiro) e se lançou à arte (que não lhe traz dinheiro algum). No entanto, vive. É feliz. Adaptou-se, criou laços, aprendeu a viver por si. Vive de e com arte. Seu dia é arte. Quando quer produz. E não fica produzindo feito um louco, como uma indústria. Trabalha quando lhe vem idéias, vontade e musa. Salve Maurício.
p.s.: Carlos Asp também pertence a esta etnia de artistas.
[F.C.B]
pela corrupção da falência
em florianópolis, estamos acompanhando um movimento de manutenção da falência. praticamente toda a discussão da arte realizada na cidade, as representações na imprensa, hoje, seja na literatura, nas artes visuais, no cinema ou em qualquer outro lugar, gira em torno de como fazer parte desta falência, como entrar nela, e não de como corrompê-la. formadores de opinião que participam há mais tempo da discussão em torno de cultura se interessam por esta manutenção, evidente, pois é a falência que os torna notáveis; e os mais novos aparecem neste rastro, tentando catar os restos que ficam pelo caminho, e reivindicando o lugar da falência. dificilmente as perguntas “como construir outros caminhos? cavar outros buracos?” aparecem nessas discussões. não, preferimos a falência, ficamos com ela.
pude acompanhar uma conversa em torno do filme matou o cinema e foi ao governador, realizada no museu hassis, na sexta-feira. em certo momento da conversa, as pessoas que estavam discutindo (cineastas, produtores e críticos, mais novos e mais velhos) chegaram à conclusão de que 1) se os editais em santa catarina tendem a contemplar somente os projetos que promovam a “cor local” – machado de assis diria: ainda nisso? – 2) então a única possibilidade é o desenvolvimento de projetos que promovam, dessa maneira, a “cor local”, “que falem do daqui”. esta é, no final das contas, a grande e – por que não dizer? – triste conclusão a que se chega. depois daí, a discussão não avança mais, não se consegue nunca desatar esse nó, escapar dele. ficamos, portanto, no caminho óbvio, a saber - o da manutenção da falência.
sim, acredito que a realização do filme matou o cinema e foi ao governador foi uma importante iniciativa política, “de organização e resistência”, como as pessoas têm dito – e acho que o único esquecimento de luis felipe soares, em seu texto, foi não ter mencionado isso, colocando matou o cinema... ao lado de as procuradas, por exemplo – mas não vejo os rombos e o alcance político que o filme acredita ter feito. mais que isso, não vislumbro, com o filme, qualquer avanço na discussão de como construir outro cinema no estado, ou outra literatura, teatro, enfim – talvez não seja essa a discussão mais imediata, urgente, necessária? a proposição que o filme sugere, no final das contas, não seria a mesma? queremos fazer parte da falência. queremos o nosso pedaço nisso tudo. eis a fórmula.
de fato, assim, preferiria não.
[V.R]
Tudo está em seu devido lugar
____________________________________________ artes visuais lá
De completo acordo, Victor. Trata-se, de qualquer forma, daquela imensa caretice que lhe falei há algum tempo. Os artistas e quem estuda artes, em sua grande maioria, são caretas. Ou então, seres de outro mundo. "Sistema das artes" quer dizer infinitamente mais do que "favela", "política", "fome", assuntos do tipo. Não podem nem ouvir falar em movimento estudantil, não comparecem em outras áreas mesmo que das artes e querem receber seus salários única e exclusivamente com seus trabalhos de arte. Quando não, exigem bolsas para estudar. É essa a grande bandeira: viver da arte, o que quer dizer, criar um mercado para seus trabalhos e escritos. Em Florianópolis, sonham com galerias sofisticadas, um Thomas Cohn, um Edu (da Vermelho) para salvar a lavoura. Resmungam pelos bares por não haver agitação cultural... não têm onde mostrar seus visuais... Cordeiros.
[F.C.B]
em florianópolis, temos um público especializado. funciona da seguinte maneira: pessoas que fazem teatro só assistem a espetáculos de teatro, e pessoas que fazem artes visuais só comparecem a exposições de artes visuais – acreditam, por exemplo, que artes visuais e teatro são coisas muito diferentes. não sei se em outros lugares funciona assim, gostaria de saber. dias desses eu convidei um colega para ir não sei aonde, e ele respondeu: ah! não é da minha área. sim, pois ainda estamos pensando em áreas, fronteiras, compartimentos. então é assim: quando vamos a um espetáculo de teatro ou a um show de música, vemos todas as pessoas que estavam no espetáculo de teatro ou no show de música da semana passada, respectivamente. e raramente mais uma ou outra pessoa desconhecida - que geralmente é amigo do artista, familiar ou turista desocupado. os circuitos são precisamente os mesmos, não existe qualquer contaminação. os cortes de cabelo também são os mesmos – em cada circuito. preferiria um curto-circuito. dá até um cansaço.
[V.R]
O fantástico (em) Diego de los Campos
Diego de los Campos está muito bem, obrigado. Desenha, cria objetos, coloca-os em movimento, trabalha em vídeo, com sons. Sua produção atinge quantidade e qualidade invejáveis. Seu trabalho é contínuo e quase obsessivo. Quem conhece “Desenhos de um real” sabe que há um profundo engajamento do artista em seu processo artístico.
Este projeto ocorre da seguinte maneira: o artista produz diariamente dezenas de desenhos sobre papel, depositando-os em uma pasta que circula no dia a dia junto a sua bolsa. Qualquer ocasião – um café, uma cerveja, uma reunião – é perfeita para que ele saque sua pasta e mostre seus trabalhos. Vende-os a R$ 1,00, cada. Ele próprio descreve: “Para vender os desenhos, o artista sempre levará consigo uma pasta contendo não menos que 160 desenhos. Sem hesitação o trabalhador oferecerá, a qualquer pessoa, desenhos por um real”.
“Como pode, um real apenas?”, talvez seja a primeira reação ao se deparar com a proposta. Compra-se um, dois ou mesmo cinqüenta desenhos de uma vez. Paga-se em moedas, cédulas ou mesmo cheque. Para quem já conhece o projeto, basta encontrá-lo para perguntar como vai o projeto, para ser surpreendido por mais uma centena de novos trabalhos. A execução deste projeto é engenhosa: o artista, em verdade, conseguiu organizar todo um micro-mercado de artes em torno dele. Considera-se um trabalhador qualquer, antes de tudo. É humilde ao oferecer seus desenhos por um real apenas, menos do que se gasta para se engraxar um sapato. Contudo, habilmente, Diego de los Campos vai, por um lado, penetrando no fechado circuito artístico e, por outro, mobilizando o acanhado mercado da arte local.
Sua opção é clara: viver e sobreviver da arte. Para um estrangeiro – que está em Florianópolis desde 1999, provindo do Uruguai – este objetivo deve ser ainda mais difícil. Para tanto, leciona desenho nas oficinas de arte do Centro Integrado de Cultura (CIC), ministra curso de animação no SENAC. Diego é um dos poucos artistas que vivem da arte e isso é um fator relevante em sua trajetória. A estratégia de “Desenhos de um real” está de acordo com este objetivo pessoal. Escreve: “Cada desenho deve ser feito em menos de 3 minutos. Atendendo assim o seguinte cálculo: em uma hora o artista consegue fazer 20 desenhos. Em oito horas 160 desenhos. Trabalhando 25 dias por mês o artista alcança seu objetivo de fazer 4000 desenhos. Vendendo cada desenho a um real e conseguindo vender todos eles, o trabalhador ganha um salário digníssimo de 4000 mil reais”.
Recentemente, com a produção de Hércules Goulart Martins, o artista montou o projeto “Desenhos de um real” em uma exposição que pode ser vista até o dia 28 de setembro no espaço da Associação de Artistas Plásticos de Santa Catarina, que fica no Teatro Armação, Praça XV de Novembro, Centro de Florianópolis.
Já no trabalho em exposição em “1 Triz”, mostra com curadoria de Adriana Barreto e Julia Amaral que se encontra no Museu Hassis, destaca-se a questão do movimento, que é uma das questões centrais de seu trabalho. Isso está explícito neste trabalho intitulado “Devaneio”. Trata-se de uma cadeira levemente tombada para trás que, no entanto, não cai. Parece desafiar a gravidade. Diego acoplou um dispositivo mecânico e um fio de nylon que faz com que a cadeira fique em constante movimento. Assemelha-se a uma cadeira de balanço, que balança sem ninguém estar sentado. Mesmo que alguém quisesse, não poderia fazê-lo já que ela não possui assento. Diego desloca o objeto de seu espaço cotidiano, retira-lhe a utilidade e o coloca em constante movimento. Para completar, a cadeira produz um ruído singular e também constante.
Por sinal, os trabalhos de Diego de los Campos, em sua grande maioria, dialogam com o fantasmagórico. É extremamente interessante ver seu trabalho na Ilha de Santa Catarina que, a partir de uma herança mal assimilada de Franklin Cascaes, possui toda uma produção artística afetada pelo universo mítico. A bruxa tornou-se elemento comum de um de todo um imaginário que se remete ao mito e a magia como característica local. A noção, desenvolvida na famosa tese de Adalice Araújo de 1977 que fermentou e amalgamou esta visão artística, desenvolveu-se não só no discurso artístico, mas também do artesanato. Tal consenso aliado a um mesmo discurso utilizado na propaganda turística-comercial de Florianópolis, culminou com o reconhecido sinônimo “Ilha da Magia”.
Franklin Cascaes, no entanto, não tratou apenas de bruxas e “causos” do além. Sua obra é uma profunda pesquisa visual, uma verdadeira catalogação do modo de vida local. Cascaes foi um verdadeiro antropólogo que ao invés da caneta, utilizava-se de imagens. No entanto, o que foi apropriado de sua obra foi a porção dita “bruxólica”. Não por acaso, sua última exposição, realizada na Galeria de Artes da Universidade Federal de Santa Catarina, possuía uma bruxa enorme montada no lado de fora da Galeria a receber os visitantes. Bruxa virou sinônimo de Cascaes (Bruxa = Cascaes) e isso não é terrível para a compreensão do conjunto de seu trabalho. O mesmo ocorreu com Ernesto Meyer Filho, com os galos (Galo = Meyer Filho) que, no entanto, não refletem as diversas nuances do artista.
É extremamente saudável, portanto, assistirmos aos trabalhos de Diego de los Campos. Não afetado por esta problemática do fantástico na arte local, ele consegue propor novas narrativas e visualidades que arejam o discurso artístico. Mas, para além da questão fantasmática há uma grande elaboração mental. O próprio Diego entende seu trabalho como ilustração de idéias. Pensamentos que são como música. Sim, música, que enquanto não é realizada, torna-se um ritmo dentro da cabeça, indo e voltando, indo e voltando até encontrar sua materialização ou então o seu ocaso.
Sobre os artistas que estão no Contramão de minha casa
Ontem abrimos a exposição “Jogo do Bicho”, aqui no meu apartamento. As pessoas estranham: como uma exposição na casa de uma pessoa? Pois é, esta é a proposta do ESPAÇO CONTRAMÃO que está em sua oitava edição. A idéia é justamente deslocar o espaço expositivo, fazendo exposições migrantes, cada uma diferente da outra. O(s) dono(s) da casa é que são os curadores e organizam toda a programação da exposição, incluindo convites, vernissage, visitação, etc. As idealizadoras do projeto – Adriana Barreto, Bruna Mansani e Tâmara Willerding – prestam toda assessoria necessária. Há sempre algo novo para se ver e sentir no CONTRAMÃO.
Todo o processo tem sido maravilhoso para nós. Foi ótimo contar com os cinco artistas escolhidos para a exposição. Eles entraram em nossas vidas: na minha, de minha esposa (Ana Paula Bressan) e de minha gata (Emília Felina). O primeiro artista a realizar seu trabalho foi Diego Rayck. Ele chegou em minha casa apenas com um saco de carvão. Sim, um saco de carvão para churrasco. Deixei ele trabalhando a tarde inteira no meu apartamento já que eu tinha compromissos fora. Ao chegar em casa, encontrei em minha parede um ser maravilhoso, enorme, que ocupa agora boa parte do meu escritório. Ele desenhou diretamente sobre a parede. O ser surgiu de seu universo onírico: fã dos jogos de RPG, ele criava todo mundo para jogar, como um universo paralelo, com seres, cidades, flora, fauna, tudo imaginado e desenhado por ele próprio. Operava como um pequeno deus, criando e ordenando o seu mundo. E isso tem relação direta com o trabalho artístico. Pois bem, foi entregue ao Diego uma parede inteira para ele dar forma a este mundo em minha casa. Com um senso magistral do espaço, ele pensou na perspectiva de quem entra no escritório (onde se encontra esta parede) e desenhou um ser enorme que por um lado intimida e por outro mostra certa fragilidade já que está nu e parece surpreendido ao nos ver entrando no quarto. O desenho a carvão funciona como uma espécie de portal, com o ser saindo de seu mundo (o universo do artista, a cabeça de Diego Rayck) e entrando no meu (o meu apartamento, mas também de quem vê a exposição).
Depois chegou Maurício Muniz. Antigo amigo, veio para também desenhar sobre a parede o projeto “Casa de uma parede só”. Por diversas vezes havíamos falado desta casa que, em verdade, é seu antigo sonho. Há mais de vinte anos ele desenha construí-la. Eu nunca havia conseguido compreendê-la inteiramente. Ele fazia pequenos desenhos em papéis, guardanapos, mas sempre parciais. Numa manhã, ele veio ao meu apartamento e com um giz pastel começou a desenhar sobre minha parede da sala. Ao mesmo tempo em que ele desenhava eu o filmava. Em verdade, seu trabalho foi ilustrativo. Eu perguntando como funcionaria a casa, como seria construída, a disposição dos móveis e ele me mostrando tudo isso visualmente. Por fim, eu adotei seu sonho e também quero construí-la.
Maurício foi o grande amigo a acompanhar todo o processo de exposição. Ajudou em toda a montagem. Foi particularmente importante para ajudar a pensar o modo como montaríamos o trabalho de Luiz Henrique Schwanke. A amiga Néri Pedroso me emprestou sete linguarudos de Schwanke para a exposição. O caso de Schwanke, no entanto, era um dos que mais me preocupava. Já falecido, eu me questionava muito sobre como iria montá-lo já que eu teria que levar em conta o modo como iria apresentá-lo mas também como iria manter boas condições de conservação. Pensei em montá-lo no chão, para inverter um pouco a lógica expositiva e, afinal, eu havia gostado muito de ver as coisas do Schwanke na horizontal, no chão (não diretamente, mas dentro de caixas) quando estive na casa de Maria Regina Schwanke, irmã do artista e que hoje guarda seu acervo enquanto o Museu de Arte Contemporânea de Joinville não fica pronto. Foi muito legal poder conhecer parte do acervo do Schwanke em papel lá em Joinville: pude ver a diversidade e a profundidade de seu trabalho. Há muito ainda a se mostrar de Schwanke. Pois bem, ao montar os trabalhos pensei nisto, mas também tentei equacionar com a questão da conservação: o chão foi forrado com papel neutro para depois receber uma camada de jornal (a idéia das folhas de jornal vieram justamente porque Schwanke também desenha seus linguarudos sobre folhas de jornal). Os sete linguarudos foram distribuídos sobre o jornal (cada um com folhas de papel neutro atrás para não entrar em contato direto com o jornal que é extremamente ácido e, portanto, nocivo à obra). Na seqüência, colocamos um vidro para protegê-lo.
Diego de los Campos chegou enquanto Maurício Muniz ainda estava em meu apartamento. Foi legal os dois se conhecerem já que ambos trabalham com vídeo e fazem animações. Nos divertimos muito juntos entre chicaras de café. Diego chegou com seu objeto que consiste em um mecanismo que trabalha com bolinhas de vidro batendo sobre dois recipientes com água. A cada toque da bolinha, produz-se um som, parecido com um sino. Há toda uma questão de ritmo ainda neste trabalho. É muito difícil descrevê-lo verbalmente. Diego trouxe ainda uma foto maravilhosa, uma paisagem noturna, com uma árvore e com nuvens parecendo ondas. Para finalizar aquilo que ele chamou de “tríptico”, ele trouxe cerca de quinze garrafas de água de 500ml. Durante o vernissage, pediu para as pessoas beberem meio litro de água. Ao final, Diego pegou as garrafas, fez um pequeno furo nelas com um estilete e as transformou a numa espécie de corneta já que a soprando, extraí-se um som parecido a um trombone ou algo do tipo.
O último dos últimos foi Carlos Asp. Chegou atrasado, vindo de viagem. Montou a exposição enquanto ocorria o vernissage. Pouco importa. E isso é legal no ESPAÇO CONTRAMÃO. Sem as formalidades requisitadas pelos museus e galerias, caso um artista atrase não há grandes problemas. Asp chegou as três horas da tarde – a exposição foi aberta ao meio-dia – almoçou, conversou com todo mundo para só depois montar, tranqüilamente, seu trabalho. Eu admiro o Asp. Sua humildade é imensa. Sempre anda com seus trabalhos em suas pastas e sacolas. Retira-os e mostra-os a todo mundo, explicando-os com a maior tranqüilidade e de maneira didática. E foi maravilhoso poder ver seus trabalhos recentes. Asp tem um ritmo que é todo seu e que não é o ritmo do trabalho burocrático, do trabalho acadêmico, muito menos de qualquer outro trabalho. É o seu ritmo, desacelerado, mas que consegue manter uma produção maravilhosa. Asp comeu, bebeu, conversou, dormiu, acordou, saiu e todo o tempo eu ficava admirando aquela figura, com uma simplicidade e com uma jovialidade invejável. Salve Asp!
Renata Patrão em individual na ARCO
Em pequenos pedaços quadrados de papel, todos dourados, Renata Patrão sugere a (re)construção dos arcos da Galeria. Explica-se: a sala onde está seu trabalho possuía dois arcos que serviam como portas/passagens. Para montar o espaço expositivo, fechou-se tais arcos. A intervenção, no entanto, sempre é visível. Como ferida que não cicatriza, a arquitetura da casa insiste em se mostrar. Mesmo camadas e camadas de massa corrida não conseguem fazê-la desaparecer.
Renata Patrão chegou com uma caixinha cheia de papéis de cigarro dourados. Com cola e os dedos, lançou-se justamente às marcas que faziam lembrar do arco. Começou a redesenhar com seus quadradinhos dourados a forma de arco. Não chega a completá-los: apenas sugere.
O poema dadaísta de Mabel que apresenta a exposição, diz: “Revelar o óbvio apenas pelo prazer raro dourado (...) Santa ousadia falar sobre o que não se viu”. A escrita de Mabel dá conta daquilo que é a grande poesia do trabalho de Renata Patrão.
O trabalho é pictórico e ao mesmo tempo arqueológico. Por acréscimo, Renata Patrão chega ao subtraído. Adicionando quadrados e dourados, faz lembrar o que já não há ali: um arco.
Contramão pousa no meu apartamento
Jogo do Bicho
Espaço Contramão
A oitava edição do Espaço Contramão, desta vez ocorrerá em São José (SC), no meu apartamento, com a exposição “Jogo do Bicho”. Participam os artistas Carlos Asp, Diego Rayck, Diego de los Campos, Luiz Henrique Schwanke e Maurício Muniz. A curadoria ficou ao encargo de Emília Felina. De 23 de setembro a 14 de outubro de 2006.
Contramão é um espaço móvel que migra através de residências, propondo intervenções artísticas dentro do ambiente doméstico. Por concepção, o ambiente se molda e se adapta de acordo com o espaço de ocupação do momento e a configuração das pessoas envolvidas, ou seja, a cada mês ou exposição, o evento acontece numa casa diferente, tendo seu dono como curador, que delimitará espaço, artista(s), período e horário de visitação.
A idéia para “Jogo do Bicho”, que acontecerá no apartamento de Ana Paula Bressan, Fernando C. Boppré & Emília Felina, surgiu de uma inquietação. Posto que a curadoria caberia aos donos da casa, começou-se a questionar quais os critérios para se chamar esse ou aquele artista.
Isso porque nestes casos o que está em jogo é antes uma relação afetiva do que qualquer outro critério estético ou mesmo temático. A partir disto, Ana Paula e Fernando decidiram repassar a curadoria e seus critérios para quem realmente é a dona da casa: a gata Emília.
Após uma semana inteira de conversas e discussões contundentes, o trio chegou a conclusão que a melhor solução seria a seguinte: após um dia inteiro de jejum, a gata seria servida com suas bolinhas de ração CAT SHOW, como de costume. Desta vez, no entanto, as bolinhas seriam distribuídas no chão e embaixo de cada uma haveria um pequeno pedaço de papel com o nome de um artista. Foram dispostas diversas bolinhas com vários nomes de artistas. As cinco primeiras bolinhas que ela comeu corresponderia aos cinco artistas que seriam convidados para a exposição.
E assim foi feito. O critério afetivo foi substituído pelo instinto da Emília. Até uma gata pode fazer a curadoria, certo? Afinal, a vontade de matar a fome é um critério muito mais justo, não?
CARLOS ASP, DIEGO DE LOS CAMPOS, DIEGO RAYCK, LUIZ HENRIQUE SCWANKE (in memorian) e MAURÍCIO MUNIZ foram os escolhidos. Foram encarregados de ocupar o apartamento do trio e trazerem um agrado para a Emília. Afora, a ironia da proposta, os cinco nomes escolhidos são importantes artistas e possuem uma produção extremamente significativa. Emília foi astuta na escolha. Especial agradecimento aos quatro artistas pelo aceite imediato e no caso de Luiz Henrique Schwanke, faz-se especial agradecimento a Néri Pedroso pelo empréstimo das obras e ao Instituto Luiz Henrique Schwanke de Joinville/SC por ter apresentado parte do acervo do artista a Fernando C. Boppré.
A exposição abrirá no dia 23 de setembro de 2006, das 12hs até 24hs. O endereço é a rua Charles Ferrari, 609/204, no bairro Kobrasol, em São José. Poderá ser vista e sentida até o dia 14 de outubro, bastando ligar para o telefone (48) 9912-4879 para agendar a visita.
Painas
Abaixo segue a troca de e-mails que mantive com a artista Maria Araújo entre 16 e 25 de agosto de 2006. Ela surgiu a partir de minha ida a abertura de sua exposição na galeria ARCO, de Florianópolis, em 11 de agosto. A exposição, chamada “Flanêur” esteve de 11 a 18 de agosto no espaço e faz parte do projeto “DOBRAS”, da mesma galeria. A publicação foi autorizada por Maria Araújo e desde já agradeço a gentileza.
Fernando escreve em 16/08/2006
Oi Maria, estou ainda pensando em sua exposição e, desculpe minha ignorância, teperguntarei algumas coisas: 1) Há paineiras aqui em Florianópolis? 2) Impressão minha ou você nos deu (ao público) apenas um pouco, o mínimo das paineiras, para sentirmos mais a falta do que a presença, para estarmos, de alguma forma, lidando com a ausência diante de teu trabalho. Enfim, falar em uma paisagem ausente é um grande erro, uma viagem de quem observa ou você acha pertinente? 3) Caso tiveres algo mais explicativo a colocar sobre este teu trabalho, por favor o faça, isso porque o texto da Karina é quase que complementar ao teu trabalho, não sendo uma crítica propriamente dita, parece-me, mais precisamente, um elemento que participa do teu trabalho. Desculpa incomodá-la, att.
Fernando C. Boppré.
p.s.: Em anexo algumas fotos que tirei no local.
Maria responde em 17/08/2006
Olá Fernando! Você não me incomoda de jeito nenhum!!!!! Fico feliz por suscitar algo a ser questionado. Principalmente pela sua primeira pergunta... 1) Há paineiras aqui em Florianópolis? R: Sim. Muitas e estão todas com os frutos amadurecidos soltando suaspainas e espalhando-as pela cidade. Na rótula que entra na rua Madre Benvenuta, há algumas paineiras. No dia da exposição o chão estava coberto de painas. Creio que agora já estejam terminando. Na saída da ponte em direção ao continente há uma imensa. Nomorro atrás do Hospital de Caridade...dentre outras. 2) Impressão minha ou você nos deu (ao público) apenas um pouco, o mínimo da paineira, para sentirmos mais a falta do que a presença, para estarmos, de alguma forma, lidando com a ausência diante de teu trabalho. Enfim, falar em uma paisagem ausente é um grande erro, uma viagem de quem observa ou você acha pertinente? R: Não foi somente você que teve essa impressão! É que mostrei o processo de algo que ocorreu. Vou explicar por partes: 1- tingi algumas painas com pigmentos naturais;2- tingi outras painas com pigmentos de aquarela; Não fiquei muito satisfeita com o resultado, pois a paina natural guarda um brilho que se perdia principalmente nas tingidas com aquarela. Conheci o trabalho do artista plástico Andy Goldsworthy (umas bolas de neve incrustadas com coisas da natureza). Então tive a idéia de congelar as painas em duas vasilhas com formato de meia lua. Depois fotografei todo o processo de degelo. Ao montarmos a exposição decidimos que todo esse processo ficaria de fora, pois somente com o material que tínhamos já conseguiríamos acionar, no espectador, a paisagem externa. As paineiras com frutos maduros soltando suas painas. Portanto a paisagem não está ausente. O que ocorre é que se torna necessária ação do artista para o espectador percebê-la. 3 - Quanto ao texto da Karina também achei bastante enigmático, mas gosto de pensá-lo como um elemento que participa do trabalho e faz o espectador pensar (instiga-o). No projeto "Dobras", cada texto pode ser um trabalho em si. E aquelas foram impressões que ficaram na Karina quando apresentei o trabalho alguns meses antes da exposição. Na ocasião, também mostrei os guardanapos onde colocava as painas para secar. Estes absorviam grande quantidade das cores das painas. (Creio que as impressões da Karina dizem mais respeito a esses guardanapos). Na conversa com o artista falei sobre o fato de não expor algumas coisas, pois o espaço não comportava. Ao montarmos a exposição fomos eliminando algumas coisas e, inclusive o livro do processo de degelo ficou na mesa no lado de fora, justamente para não "sufocar" o conteúdo do que havia na pequena sala. Creio numa conversa ao vivo isso tudo poderia ficar mais claro, mas espero que tenha tirado algumas das suas dúvidas. Se achares necessário mais algumas informações é só me passares novo e-mail com suas questões! Muito satisfeita por sua atenção. Maria:)
Fernando escreve em 20/08/2006
Oi Maria, ótimo! É ótimo podermos conversar. Compreendi o processo. Contudo perceba o problema que estava colocado: eu fui à exposição, curti o aspecto visual, mas fiquei me perguntando o que ligava as coisas, quais conceitos ou problema estavas trabalhando. Não consegui achar o fio da meada, mesmo porque eu não sabia o que era "paina" - você me disse no dia, somente aí comecei a atentar para a coisa, mas caso eu não soubesse que você era a artista, eu passaria batido por este ponto vital da sua proposta. Portanto, observe que a minha apreensão estética foi apenas parcial no dia. Se eu tivesse alguns dados, como estes que você me passou, (e provavelmente os demais visitantes que assim como eu chegaram sem estar ligados ao teu universo ou mesmo da arte contemporânea como um todo), provavelmente teria mais possibilidades de jogar junto ao teu trabalho, de me aproximar da tua proposta. Mas perceba novamente: isso é uma decisão sua, talvez você quisesse esse alheamento, mas isso tem que estar claro. Algo que resolveria a questão seria um texto para a exposição, não aquele da Karina pois, concordo contigo, ele participa da obra e isso é ótimo. Mas um texto que apresentasse você e a obra - poderia ser de sua autoria - que estivesse na parede ou em qualquer outro lugar do espaço expositivo. São considerações abertas, Maria, pois vi em seu trabalho um processo interessante e tão enigmático quanto o texto da Karina, que me cativou. Não por acaso estou até agora - quase uma semana depois da exposição - pensando e escrevendo sobre ela. Fica o abraço,
Fernando.
Maria responde em 24/08/2006
Olá Fernando!
Vou remeter novamente o vídeo [enviado por Maria a Fernando em um dos e-mails iniciais], mas lembre-se ele não foi editado. Ele é só para você perceber o meu encantamento por essa árvore que, nessa época do ano, derrama essas "pequenas nuvens", a bailar pela cidade, com as sementes. Também pensei em escrever um texto, mas com tantas coisas na universidade e a proposta de somente dois artigos de colegas serem editados, me pareceu suficiente. Por fim achei que expliquei de mais, o trabalho, na conversa com o artista. Sei que você não estava presente e é justamente por esse motivo que acho interessante esse bate-papo. O que as pessoas captaram e/ ou decidiram investigar após tomar contato com o material que mostrei na exposição é que é relevante. Todas as considerações são possíveis e tudo é somatório. Não achas? Vou anexar também o convite para a próxima exposição na ARCO que será amanhã, dia 25/08/06. Espero que o instigue tanto quanto a minha! Tente aparecer. Beijos
Maria:)
Fernando escreve em 25/08/2006
Com relação ao bate-papo, acho que a exposição deve funcionar independente dele. Pense que em uma exposição de maior porte, os trabalhos ficarão um ou dois meses em um espaço e as pessoas sequer irão conhecer a sua voz. Por sinal, não gosto dos bate-papos com artistas porque eles geralmente explicam demais – premidos pela necessidade de falar, algo que não faz parte do discurso artístico, pelo menos na maioria das obras.
Quanto as paineiras, vi (percebi) uma linda, logo na cabeceira da Ponte Colombo Salles, ela está ótima, parecem algodões. Abraço e até mais,
Fernando.
Fernando escreve em 03/09/2006
Oi Maria. Eu havia lhe falado de minha idéia de publicar nossa troca de e-mails no blog ARTE POR EXTENSO. Em anexo segue o texto que quero publicar e lhe peço a devida autorização para isso. Colocarei também algumas fotos das obras. Abraço, Fernando.
Maria escreve em 05/09/2006
Olá Fernando! Reli todo o nosso bate-papo e acho que vai ser interessante para ler. Portanto está totalmente autorizado!! Abraço, Maria.
Braço gelado de manga e baunilha
O título acima é um dos pratos mais conhecidos de Ferran Adrià, um cozinheiro que tem status de melhor chef catalão. Ele estará com suas receitas na exposição que é a atual referência da arte contemporânea, a Documenta de Kassel. Deixando de lado o exotismo e/ou astúcia do curador Roger Buergel em chamá-lo, há algo importante a se pensar aqui.
As artes sempre foram consideradas como as vias de apreensão estética por excelência. A elas foram confiadas a capacidade de proporcionar experiências sensíveis (em oposição ao procedimento racional) que, muitas vezes, culminavam com o belo. Artes plásticas em primeiro lugar, depois a música, a literatura, o teatro, a dança... Outras experiências sensíveis como a gastronomia ou mesmo o sexo foram consideradas no máximo “estéticas sem linguagem” ou rebaixados a categoria de “cotidiano”, sendo que este último somente no século XX virou objeto de estudo das ciências humanas.
O convite a Ferran Adrià recoloca em pauta a questão acerca do que entendemos por estética. Para Adrià: 1) “A informação que um prato propicia se desfruta por meio dos sentidos e se racionaliza com a reflexão”; 2) Seu trabalho está, sobretudo, naquele que o recebe; 3) Sua inovação na cozinha foi colocar os alimentos para funcionarem a partir de seus próprios gostos, abrandando o ato de temperar, tão tradicional da cultura européia há mais de um milênio, basta lembrarmos que os europeus deixavam seu continente e se aventuravam por terras desconhecidas das Índias Orientais em busca das especiarias para melhorar o paladar de suas comidas. Estes três pontos dialogam perfeitamente com o discurso da arte contemporânea. Para terminar, Adrià em entrevista a BRAVO! nº 108 diz que o critério subjetivo é o que prevalece: o emocionar-se. O que ocorre é o alargamento das extensões que as artes visuais vêm realizando nos últimos 50 anos. Colocar alimentos como obras de arte não é novidade, no entanto, o que parece agora é que não se quer tomar o trabalho de Adrià como obra das artes plásticas ou visuais, mas como uma experiência estética em si.
Estética: propulsora da história moderna
Civilização ligada à educação dos sentidos. Isso é ponto comum nos estudos das ciências humanas, basta pensarmos em Norbert Elias ou mesmo Michel Foucault. A questão é que a estética – modo de apreender o mundo pelos sentidos – foi o motor da modernidade e das das grandes descobertas, do conhecimento de uma nova geografia, línguas, culturas, etc. O desejo de sofisticar a estética como propulsor da história moderna.
Os retratos de Sebastião Vieira Fernandes
Retrataria senadores e governadores de Santa Catarina. O pintor Evêncio Nunes, seu colega na pintura da Igreja da Candelária, coordenada por Zeferino da Costa, declarou que “Sebastião foi um bom retratista, tendo feito um grande número de retratos para esta cidade [Rio de Janeiro] e para outros lugares”. Fernandes manteve por muitos anos, ainda, um “atelier, montado na rua dos Inválidos, [onde] dedicou-se à pintura de retratos, que, pela perfeição com que os executava, lhe foi grangeando nomeada freguesia, dando-lhe, deste modo, dias mais folgados, tanto a si quanto a sua dedicada companheira”, como escreve Henrique Bouteux. Órfão desde cedo, Fernandes sobreviveu de sua arte na Capital federal, em grande parte graças aos seus retratos.
O obscuro Rafael Mendes de Carvalho
Rafael Mendes de Carvalho, nome eclipsado da história da arte local pelo vulto de Victor Meirelles, parece ter obtido relativo sucesso junto a Escola Nacional de Belas-Artes durante um certo período. Tornar-se-ia, inclusive, pensionista na Europa. Do pouco que se sabe a respeito de sua trajetória, registra-se que foi auxiliar de Manuel de Araújo Porto Alegre – também mestre de Victor Meirelles – e que trabalhou na preparação dos grandiosos festejos da coroação de Dom Pedro II, evento bastante significativo para vários artistas do período que simplesmente transformaram parte da cidade do Rio de Janeiro através de seus trabalhos artísticos, coordenados por Porto Alegre. Tal ligação, entre Carvalho e Porto Alegre, com toda certeza deve lhe ter garantido diversas encomendas já que Porto Alegre mantinha uma fiel clientela, mas que por conta de suas inúmeras tarefas, não conseguia realizá-los, como registrou em suas memórias: “(...) muitas encomendas para pintar retratos de figuras destacadas da corte”.
A trajetória de Rafael Mendes de Carvalho é obscura. Henrique Boiteux, no entanto, formula uma hipótese para a sua trajetória. Segundo ele, sua carreira se transformaria completamente com a viagem à Europa, realizada com parcos recursos: “Sem meios de criar ambiente que o fizesse conhecido em meio estranho, fazendo-o ao contrário arredio da sociedade em vez de dar-lhe ânimo a vencer, bem ao contrário o tornaria descrente. Era uma vítima do obscurantismo da época. Desiludido, regressou à Pátria, para se entregar à pintura de retratos de provedores de irmandades, de barões e dando lições de desenho até que a morte o levou a total esquecimento”. A descrição de Henrique Boiteux remete novamente ao problema dos retratos para os artistas da época: muitos consideravam a produção de retratos como tarefa inferior a ser cumprida pelo artista. Desiludido, Rafael Mendes de Carvalho passaria a fazer apenas retratos.
Victor Meirelles retratista
Victor Meirelles, o homem que teve que receber um empurrãozinho de seu mestre Manuel de Araújo Porto Alegre – também retratista – uma vez que na Europa parecia se voltar cada vez mais para a grande pintura, ou seja, a pintura histórica. Advertiu-lhe: “Como homem prático, e como particular, recomendo-lhe muito o estudo do retrato, porque é dele que há de tirar o maior fruto de sua vida: a nossa pátria ainda não está para a grande pintura. O artista deve ser uma dualidade: pintar para si, para a glória, e retratista, para o homem que precisa de meios”.
Este famoso conselho de Porto Alegre mostra, em verdade, o modo como os pintores encaravam os retratos: uma produção secundária, mas de caráter peculiário. Não apenas Victor Meirelles se debateria com esta questão: só em Santa Catarina, outros pintores como Rafael Mendes de Carvalho e mesmo Sebastião Vieira Fernandes teriam que lidar com esta questão.
Victor Meirelles tornou-se um exímio retratista, apesar de mais reconhecido nas pinturas históricas e paisagens. Além de diversos estudos de cabeças e retratos tradicionais, o artista realizou algo que ainda hoje suscita debate: o retrato de uma morta. Obra também pertencente ao acervo do Museu Victor Meirelles, "A Morta" leva ao extremo o pressuposto “posado” do retrato.
Instituto Topofílico
Fomos até certo ponto. Nem perto do que faz, atualmente, o Instituto Topofílico (IT). Um grupo de amigos, que gosta de andar, descobrir e fazer uso do espaço público do Centro da cidade. Em suas ações, percebem que o espaço não é tão público assim e que brincar com a cidade é algo sério. São amigos dos espaços, como já diz o nome, que, por sinal, traz um embuste ao se auto-intitular “Instituto”. Mesmo sem CNPJ, o Instituto Topofílico faz mais do que muitas associações, fundações e institutos juntos. O IT fundou uma rede criativa e relacional que atua no Centro da cidade. Elegeu espaços como a Travessa Ratcliff como bases operacionais, tornando públicas relações e propostas de intervenção na cidade. Vivem de sucessos e fracassos: Festival de Outono na escadaria do Teatro da UBRO estrondosa; ação no Parque da Luz chuvosa. Seus membros também são variáveis, ora estão, ora não. É uma associação livre de pessoas se envolvendo na cidade, criando momentos críticos e situações de encontro e também de desencontro.
Fragmento sobre "Queimando a Cuca"
(Este é um fragmento do texto integral intitulado “Pensando na Contramão”, publicado no Caderno Idéias, do jornal A Notícia, em 30 de junho de 2006 e também no site NET PROCESSO, www.netprocesso.art.br)